Textos

Textos de referências teóricas:

O Divã do pobre (ou “o divã popular”)
Autor: Felix Guattari

O CINEMA COMO PSICOFICÇÃO: A MÁQUINA PARA SONHAR ACORDADO
Autor: Ernesto Giovanni Boccara

REFLEXÕES SOBRE A SEMIÓTICA e a Música: em John Cage e Caos
Prof.Ms.Fábio Pligher (sob orientação do Prof.Dr.Ernesto G. Boccara-em mestrado em Artes pela Unicamp)

Incursões orientadas em uma região submersa: encontrando a chave para o Inconsciente através da Arte.
Autor: Ernesto Giovanni Boccara

O que é Documentário?
Autor: Fernão Pessoa Ramos




O Divã do pobre (ou “o divã popular”)

Autor: Félix Guattari

Texto de referência (tradução-Prof.Boccara.)


Os psicanalistas sempre foram desconfiados do cinema, eles sempre foram atraídos por outras formas de expressão. Mas o inverso não é verdade, os apelos das bases do cinema à psicanálise foram inumeráveis, começando pela proposição de M.Goldwyn a Freud: cem mil dólares para tratar de amores célebres! Esta dissimetria sem dúvida não é causada a assuntos de respeitabilidade, ela se relaciona mais fundamentalmente ao fato de que a psicanálise não pode compreender os processos inconscientes que são colocados em jogo pelo cinema. Ela tentou algumas vezes de estabelecer analogias formais entre o sonho e o filme - para René Laforgue, se trata de uma espécie de sonho coletivo, para Lebovici, de “um sonho para fazer sonhar” . Ela tentou assimilar a sintagmática fílmica aos processos primários mas ela nunca conseguiu se aproximar, e por causa daquilo que a torna específica: uma atividade de modelagem do imaginário social irredutível aos modelos familiares e edipianos, mesmo nos casos aonde ela se coloca deliberadamente a seu serviço. A psicanálise se preenche atualmente da linguística e da matemática, ela nem continua ao menos a subtrair as mesmas generalidades sobre o indivíduo e a familia, enquanto que o cinema se envolveu com o conjunto dos campos sociais e históricos.
Alguma coisa de importante ocorre por outro lado, ele(o cinema) é o lugar de investidas de cargas libidinais fantásticas, por exemplo daquelas que se formam ao redor de uma espécie de complexos que constituem o faroeste racista, o nazismo e a resistência ao american way of life, etc. E é preciso admitir que Sófocles dentro de tudo isto, não tem nada a dizer!

O Cinema tornou-se uma gigantesca máquina de modelar a libido social, então que a psicanálise nada foi além de ser um pequeno artesanato, reservado a elites selecionadas.

Nós vamos ao cinema para suspender durante um certo tempo os modos de comunicação habitual. O conjunto dos elementos constitutivos desta situação concorrem a esta suspensão. Qualquer que seja o caráter alienante do conteúdo de um filme ou de sua forma de expressão o que ele objetiva fundamentalmente é a produção de um certo tipo de comportamento que por falta de melhor termo eu chamaria de: performace cinematográfica. É porque o cinema é capaz de mobilizar a libido a partir desse tipo de performace e que esta pode servir ao que Mikel Dufrenne chamou de "a casa do inconsciente".

Considerado sobre o ângulo da repressão inconsciente, a performance cinematográfica e a performace psicanalitica (o ato analítico) merecem e podem ser comparadas.
A psicanálise da "Belle époque", há muito tempo, fez crer que ela se propunha liberar as pulsões dando-lhes a palavra; de fato ela jamais aceitou desfiar o tecido do discurso dominante que na medida aonde ela poderia fazê-lo, melhor que jamais o tivesse feito pela repressão ordinária, dominando-os e disciplinando-os, adaptando-as às normas de um certo tipo de sociedade.
No final das contas, o discurso debitado nas sessões de análise não é mais libertador que aquele que se manifesta nas sessões de cinema. A pretensa liberdade de associação de idéias não é mais do que um procedimento que mascara uma programação, uma modelização secreta dos enunciados. Tanto na cena analítica quanto na tela, se entende que nenhuma produção semiótica do desejo não terá presença real. O pequeno cinema da análise e a psicanálise de massa do cinema definem um e outro, as passagens ao ato, os acting out.

Os psicanalistas e igualmente numa certa medida, os cineastas gostariam de serem considerados como criaturas fora do tempo e do espaço, como puros criadores, neutros, apolÍticos, irresponsáveis. E em algum sentido, eles podem ter razão pois de fato eles não tem realmente consciência sobre os processos de modelagem do qual eles são agentes. A matriz de leitura psicanalítica pertence, hoje em dia, tanto ao analista quanto ao analisado ela se cola na pele de todos e de cada um - "Veja, você fez um lapso (ato falho)" -, ela se integra às estratégias intersubjetivas e também aos códigos perceptivos: proferimos interpretações simbólicas como ameaças, nós "vemos falos, retorno ao seio maternal, etc.
A interpretação agora, que vai por conta de si mesma, da melhor maneira possível, de maneira assegurada, por um psicanalista atento, é ainda o silêncio. Um silêncio sistemático, batizado de escuta analítica: "sobre a tela do meu silêncio, teus enunciados tomarão o seu sentido" a cada um, seu cinema.
Em verdade, o vazio da escuta responde aqui a um desejo vazio de todo o conteúdo, a um desejo de nada, a uma impotência radical e não é de se estranhar, nestas condições que o complexo de castração, tenha se tornado o objetivo último da cura e mesmo sua referência, constante a pontuação de cada uma de suas seqüências, o cursor que devolve perpetuamente o desejo ao seu grau zero.
O psicanalista, assim como o cineasta, é conduzido pelo sua subjetividade. É o que se espera de um e de outro, é a confecção de um certo tipo de droga, que por ser tecnologicamente mais sofisticado que os barbitúricos tradicionais, não por menos de sua função de transformar o modo de subjetivação daquele que a ele se dedica: Captamos a energia do desejo para retorná-la contra ela mesma, pra anestesiar, para cortá-la do mundo exterior de modo a que ela cesse de ameaçar a organização e os valores do sistema social dominante. Mas o que nós queremos mostrar é que estas drogas não são da mesma natureza; globalmente elas procuram os mesmos objetivos, mas a micropolítica do desejo que elas colocam em ação e os agenciamentos semióticos sob os quais elas se apóiam, são totalmente diferentes.

Pode ser talvez que estes críticos não procurem além que um certo tipo de psicanálise e que não concerne verdadeiramente à corrente estruturalista, na medida aonde ele não considera mais que a interpretação deve depender de paradigmas de conteúdo, como era o caso com a teoria clássica dos complexos semelhantes - mas de um jogo de universos significantes, independentemente das significações que eles podem engendrar? Mas poderia crer, verdadeiramente a psicanálise estruturalista quando ela pretende a sua renúncia a modelar e a transcodificar as produções do desejo?

O inconsciente dos freudianos ortodoxos foi organizado em complexos cristalizantes da libido, principalmente uma série de elementos heterogêneos: biológicos, familiares, sociais, éticos, etc. O complexo de Édipo, por exemplo, que colocaram de lado seus componentes traumáticos, reais ou imaginários, foram fundados sobre a divisão dos sexos e aqueles das faixas etárias. Considerávamos que se tratava de bases objetivas por relação àquelas em que a libido estava prestes a se exprimir e se finalizar. Mesmo hoje uma interrogação política sobre estas evidências poderá parecer a alguns como fora de propósito.
E, portanto todo mundo conhece as numerosas situações onde a libido recusa estas evidências, onde ela contorna a divisão dos sexos, onde ela ignora as interdições relacionadas às diferenças de idades, onde ela confunde, como prazer, as pessoas , onde ela compõe, a sua ordem as constelações de tratos de visibilidade ̀as quais e mesmo onde ela tem a tendëncia a passar ao lado de oposições exclusivas entre o sujeito e o objeto e entre eu e o outro.Devemos considerar que não se trata lá , por definição , de situações perversas marginais ou patológicas,que pedem para serem interpretadas e adaptada sem referëncia
às boas “normas`` .
É verdade que, na origem, o estruturalismo Lacaniano se constituiu contra um realismo “naif “, em particular sobre questões que rodeiam o narcisismo e a psicose, e pretendia romper radicalmente com uma prática da cura inteiramente centrada sobre a remodelagem do “eu “. Mas desnaturalizando o inconsciente, liberando seus objetos de uma psicogénese muito concentrada, estruturando-os “como uma linguagem”, ele não o ajudou , portanto, a romper suas amarras personalistas e se abrir ao campo social, ao fluxo cósmico e semiótico de toda espécie. Cessamos de remeter as produções de desejo a uma bateria de complexos totalizadores mas se pretende sempre interpretar cada uma de suas conexões de uma única e mesma lógica do significante onde as matrizes seriam o “falo “ e a “castração”. Renunciamos ao mecanismo reducionista das interpretações de conteúdo (“o gurda-chuva , quer dizer....”)e de estados de desenvolvimento(os famosos “retornos” ao estado anal, etc.)Não se trata mais da questão do pai e da mãe: se fala agora do nome do pai, do “falo” do grande “Outro” mas continuamos distante da micropolítica do desejo sobre o qual se fundamenta a diferenciação social dos sexos, ou a alienação da criança em guetos do familiar. As lutas do desejo não teriam sido circunscritas ao único terreno do sigificante, mesmo no caso da “pura” neurose significante, como a neurose obsessiva, elas se derramam sempre sobre os terrenos somáticos, sociais, econômicos, etc. E no mínimo considerando que o significante se encontra em tudo, sem se importar no quê, é preciso admitir que restringimos o papel do inconsciente ao considerá-lo apenas sob o ângulo das cadeias significantes que ele coloca em jogo. ”O inconsciente é estruturado como uma linguagem” Certo! Mas por quem? Pela família, pela escola, pela caserna, pela usina, pelo cinema, e no caso específico, pela psiquiatria e pela psicanálise. Não somente ele tomou partido da sua alienação às cadeias significantes mas solicita e re-solicita siginificação! O que sobra, por exemplo, a este nível do significante, a alienação milenar das mulheres pelos homens? Pela fala dos linguistas, os traços inocentes como a oposição do masculino e do feminino, e dos psicanalistas , das miragens que jogam ao redor da presença –ausência do “falo”. A cada tipo de perfomance linguística, a cada cotação “da graduação gramatical “de um enunciado, correspondente a uma certa situação de poder. A estrutura do significante não é completamente redutível a uma pura lógica matemática, ela sempre é parte relacionada às diversas máquinas sociais repressivas. Uma teoria de natureza universal , assim como em linguística, em economia em antropologia que em psicanálise, não só poderá fazer obstáculo a uma exploração real do inconsciente, isto é constelações semióticas de toda natureza, de relações de forças e de contraposições de toda natureza que constituem os agenciamentos do desejo. A psicanálise estruturalista não poderá
pois certamente nos ensinar mais coisas sobre os mecanismos inconscientes que se colocam em jogo pelo cinema ao nível de sua organização sintagmática, que não pode fazê-lo a psicanálise ortodoxa, ao nível dos conteúdos semânticos. Mas será que o cinema, ele mesmo, poderia nos ajudar a compreender a pragmática das investigações inconscientes no campo social?

Com efeito o inconsciente no cinema não se manifesta da mesma forma que no divã: ele escapa parcialmente à ditadura do significante, ele não é redutível a um fato de linguagem, ele não respeita mais, como continuava de o fazer a transferência psicanalítica, a dicotomia clássica da comunicação entre o locutor e o ouvinte. Seria no entanto oportuno de se fazer a questão: saber se esta dicotomia deva ser colocada entre parênteses ou se não há lugar de reexaminar, nesta oportunidade, o conjunto das relações entre o discurso e a comunicação. Pode ser, apesar de tudo, que a comunicação entre um locutor e um auditor discerníveis, se trata apenas de um caso particular, um caso limite, do exercício do discurso. Pode ser que os efeitos de subjetivação e de desindividuação do enunciado que são produzidos pelo cinema ou em situações similares ( drogas, sonhos, paixões, criações, delírios, etc.)não representam casos excepcionais por relação ao caso geral que é definido pela comunicação intersubjetiva “normal” e da consciência “racional” da relação sujeito-objeto .É esta a idéia de um sujeito transcendental do enunciado que deveria ser recolocado em questão e, correlativamente a separação entre o discurso e a língua ou a dependência de diversos modos de performance semióticas a uma pretensa competência semiológica universal. O sujeito consciente de si mesmo “mestre dele mesmo como do universo” não deveria que ser considerado mais do que um caso particular-aquele de uma espécie de loucura normal. A ilusão é de crer que existe um sujeito, um sujeito único e autônomo correspondente a um indivíduo, então que é um jogo, é sempre uma multiplicidade de modos de subjetivação e de semiotização. Claro, é que o cinema não escapa, portanto, nem de longe, à contaminação pela significações do poder! Mas as coisas não se passam com ele, da mesma forma, que a psicanálise ou com as tácnicas artísticasbem policiadas..
O inconsciente, no cinema, se manifesta a partir de agenciamentos semióticos, irredutíveis a uma concatenação sintagmática, que o disciplinaria mecânicamente, que o estruturaria segundo planos rigorosamente formalizados de expressão e conteúdo. Ele é feito de encadeamentos semióticos a-significantes, de intensidade de movimento, de multiplicidade que tendem fundamentalmente a escapar à quadratura significante, e que são modelados somente em um segundo momento, pela sintagmática fílmica que lhe fixa generos, que cristaliza sobre eles personagens e esteriótipos comportamentais de modo a torná-los homogêneos, com campos semânticos dominantes. Este excesso da expressão em relação ao conteúdo, define com certeza o limite entre uma comparação possível, entre a repressão do inconsciente no cinema e em psicanálise. Um e outro, conduzem à mesma política , mas os processos e os meios são diferentes. A clientela do psicanalista, se presta, ela mesma à tarefa de de redução significante. Enquanto que no cinema, este deverá, a sua vez, se manter em permanente escuta das mutações do imaginário social e de se colocar diante da proliferação inconsciente que ameaça explodir.
A linguagem no cinema não funciona da mesma forma que na psicanálise ; não se torna lei, trata-se apenas de um meio entre outros. Um instrumento no centro de uma orquestração semiótica complexa. Os componentes semióticos do filme escorregam uns com relação aos outros sem jamais se fixar e se estabelecerem por exemplo em uma sintaxe profunda de conteúdos latentes e de sistemas de transformação que desembocam, na superfície, em conteúdos manifestos. Significações relacionais, emotivas, sexuais-preferiria dizer de intensidades—e são constantemente veiculadas por “traços de matéria expressiva”heterogeneas .Os códigos se entrelaçam sem que algum deles se destaque em detrimento do outro , sem constituir substância “significante”; passamos , em um vai e vem contínuo, de códigos perceptivos a códigos denotativos, musicais, conotativos, retóricos, tecnológicos , econômicos , Sociológicos, etc.

Umberto Eco, já tinha reparado que o cinema não se duplica em um sistema de dupla articulação, e isto o tentara a conduzi-lo a encontrar uma terceira. Mas sem dúvida é preferível seguir Christian Metz que considera que ele escapa a todo sistema de dupla articulação, eu acrescentaria de minha parte, a todo sistema elementar de encadeamento significativo. Os significados, no cinema não são correlacionados diretamente em uma máquina que cruza os eixos sintagmáticos e eixos paradigmáticos; eles aparecem sempre em um outro momento, de correlações externas que a modelam. Se o filme mudo conseguiu, por exemplo, exprimir de forma muito mais contundente e autêntica do que o filme falado as intensidades do desejo em suas relações com o campo social, não porque fosse menos rico no plano expressivo, mas porque o cenário significante não tinha ainda se apossado da imagem e que nestas condições, o capitalismo não havia ainda percebido tudo aquilo que poderia aproveitar. As invenções sucessivas do filme falado, da cor, da televisão , etc. na medida em que enriqueciam as possibilidade de expressão do desejo, conduziram o poder a reforçar seu controle sobre o cinema e mesmo se valer dele como um instrumento privilegiado. É interessante sob este ponto de vista, de constatar a que ponto a televisão não somente não conseguiu absorver o cinema, mas se viu obrigada a se submeter à fórmula do filme na potência deste no momento em que jamais foi tão forte.
O cinema comercial não é simplesmente uma droga boa de vender. Sua ação inconsciente é profunda; pode ser mais eficiente do que qualquer outro meio de expressão. Por outro lado a psicanálise não a alcança !O efeito de subjetivação da análise não consegue abolir, como o faz parcialmente o cinema, a individualização personalista do enunciado. Na psicanálise, fala-se o discurso da análise; dizemos a alguém o que cremos ser o que ele amaria ouvir. No cinema não temos mais direito à palavra; ele fala por você em seu lugar; temos o discurso que a indústria cinematográfica imagina que você amaria ouvir; uma máquina te trata como uma máquina, e o essencial não é o que ela diz, mas esta espécie de vertigem de anulação que se constitui o fato de você ser uma máquina também. Como as pessoas estão dissuadidas e que as coisas se passam sem testemunhas, não temos vergonha de nos abandonar também.
O importante, aqui, ainda uma vez, não é mais a semântica ou a sintaxe do filme, mas os componentes pragmáticos da performance cinematográfica. Pagamos nosso lugar no divã para esvanecer através da presença silenciosa do outro-se possível alguém que será um padrão nitidamente superior ao seu-,
Então pagamos nosso lugar no cinema para esvanecer através de qualquer um e de se deixar arrastar em qualquer tipo de aventura, sem compromissos, sem amanhã. Em princípio! Porque de fato a modelagem que resulta desta vertigem a bom termo não acontece sem deixar traços:o inconsciente se encontra povoado de índios, de cow-boys, de tiras, de bandidos, de Belmondos e Marlyn Monroes...É como o tabaco ou a cocaína, não percebemos seus efeitos- e quando o percebemos- estamos completamente dependentes. E esta droga é hoje administrada massivamente às crianças, antes mesmo de aprenderem a ler.
Mas a vantagem da cura psicanalítica, não é precisamente de evitar tal promiscuidade? A interpretação e a transferencia não tem por função de separar e selecionar o bom inconsciente do malvado? Não são guiados nem trabalhados através de um fio? Infelizmente esse fio pode ser ainda mais alienante do que qualquer psicanálise selvagem! Na saída do filme somos obrigados de acordar e de cessar mais ou menos seu próprio cinema – toda a realidade social é empregada nisto -, mas a sessão de psicanálise tornou-se interminável, ela transborda sobre todo o resto da vida. Geralmente, a performance cinematográfica não é vivida como outra coisa que uma simples distração, enquanto que a cura analítica – e é verdade, mesmo para os neuróticos – tornou-se como uma espécie de promoção social: ela é acompanhada de um sentimento de que estamos nos tornando qualquer coisa como um especialista do inconsciente, um especialista tão envenenador para o ambiente que os outros especialistas de não importa o que, por exemplo aqueles do cinema! A alienação para a psicanálise se refere àquilo que o modo particular de subjetivação que ela produz se organiza ao redor de um sujeito para o outro, um sujeito personalizado super adaptado, super guiado às práticas significantes do sistema. A projeção cinematográfica, ao contrário, desterritorializa as coordenadas perceptivas. Sem o suporte da presença de um outro, a subjetivação tende a se tornar um tipo de alucinação, ela não se concentra mais sobre um sujeito, ela explode em uma multiplicidade de polos, mesmo quando nós nos fixamos sobre um único personagem. Não é mais uma questão, propriamente falando do sujeito do enunciado, pois o que é emitido por estes polos, não é mais somente um discurso, mas de intensidade de toda espécie, de constelações de recursos de visibilidade, de cristalização de afetos. Mas as papilas semióticas do inconsciente, não tiveram o tempo de serem estimuladas que de imediato o filme se encarrega a condicioná-las à homogeneização semiológica do sistema (exemplo “o objeto de amor ,repitam comigo, é sempre equivalente de uma propriedade privada” ) o inconsciente, depois de ter sido colocado nú, tornou-se como um território ocupado. Mesmo os antigos Deuses da família são perturbados, eliminados ou assimilados. É que suas existências estavam relacionadas a um certo tipo de territorialização da pessoa, e a uma certa semiologia da significação. As conjunções semióticas do cinema passam através das pessoas e a linguagem da comunicação “normal”, aquela que nós temos em família, na escola ou no trabalho; ela desterritorializa todas as representações. Mesmo quando ela parece dar a palavra a um personagem “normal”, a um homem, a uma mulher ou a uma criança, trata-se sempre de uma reconstituição, de uma marionete, de um modelo – zumbi, de um “esvanecimento” que está prestes a se colar sobre o inconsciente para tomar-lhe o controle. Não levamos para o cinema, como em psicanálise, nossas lembranças da infância, o papai e a mamãe; é mais: quando nós os reencontramos em seguida, não podemos impedir de colar sobre eles as produções do inconsciente cinematográfico.
O pequeno teatro edipiano da família não resistem às injeções destas capsulas de narrativas que constitui o filme. Todo mundo fez a experiência daquilo que o trabalho do filme pode perseguir diretamente naquele do sonho – e de minha parte, eu notei que a interação era de tal ordem mais forte, que o filme me pareceu não tão bom. Isto não quer dizer que o cinema não é ele mesmo de natureza familiar, edipiano e reacionário; que não trabalha na mesma direção fundamental que a psicanálise; mas não é da mesma maneira; ele não se contenta de rebater as produções do desejo sobre as cadeias significantes; ele conduz uma psicanálise de massa, ele não adapta as pessoas aos modelos desgastados, arcaicos do freudismo, mas sim àqueles que são implicados pela produção capitalista (ou socialista burocrática). E isto, vamos repetir, mesmo quando ele reconstitui os modelos de um bom e velho tempo da família tradicional. Se os meios “analíticos” do cinema são mais ricos, mais perigosos, pois que mais fascinantes, que aqueles da psicanálise, imaginamos em contrapartida, que eles poderiam também se abrirem a outras práticas. Um cinema de combate pode se constituir, então, mesmo vendo de modo pessimista no estado atual das coisas, a possibilidade de uma psicanálise revolucionária. Paradoxalmente, o inconsciente psicanalítico ou o inconsciente literário – já que eles derivam um do outro – é sempre um inconsciente de segunda mão. O discurso da análise se constitui ao redor de mitos analíticos: Os mitos individuais são enquadrados nestes mitos de referência. Os mitos do cinema não dispõe desse sistema de meta/mitos, e a gama de meios semióticos que eles colocam em jogo em conexão direta com os processos de semiotização do espectador. Em uma palavra: a linguagem do cinema e das mídias audiovisuais estão vivas, enquanto que aquela da psicanálise não fala mais, depois de algum tempo é uma língua morta. Podemos esperar do cinema o melhor e o pior, enquanto que não podemos esperar grande coisa da psicanálise! Nas piores condições comerciais, os bons filmes podem ainda serem produzidos, filmes que modificam os agenciamentos do desejo, que abordam estereótipos, que se abram ao futuro já que, faz um bom tempo, não temos mais boas sessões de psicanálise, de boas descobertas e de bons livros de psicanálise.

Obs: Não se incluíram nesta tradução as notas de rodapé por irem além das necessidades práticas do texto para uso em aula.
Original em francês: extraído da Revista Communications No.23 ano 1975.
Psycanalyse e Cinéma. Editora SEUIL. Paris. págs.96 a 103





O CINEMA COMO PSICOFICÇÃO: A MÁQUINA PARA SONHAR ACORDADO
Autor: Ernesto Giovanni Boccara

Conceitos apresentados nesse capítulo

O cinema é hoje um meio de informação e entretenimento que mobiliza multidões. Ele é orientado pelas produtoras e emissoras em direção a um receptor múltiplo, difuso e anônimo que se estende por territórios operacionais de natureza planetária. Sua vocação é ser um empreendimento econômico de sucesso garantido pela forte capacidade de sedução e por se assemelhar ao poder que o sonho tem sobre o sonhador: o de transcender suas limitações físicas no tempo e no espaço.É por esta razão conhecido popularmente como a máquina para sonhar acordado.

Trata-se então diante disto de estabelecer analogias formais entre o sonho e o filme como uma espécie de sonho coletivo ou de um sonho para fazer sonhar. Um estímulo sensorial construído pela linguagem, pela codificação lógica dos signos apenas como força motora para atravessar o aparato perceptivo e atingir o centro do sistema nervoso central e ser decodificado e restituído a um universo subjetivo de pura emoção.

Entendendo e querendo analisar o cinema como fenômeno perceptivo, suas correlações com a cognição e o comportamento humano resultante de sua fruição, justifica-se o duplo referencial de abordagem: a Ciência dos Signos de Charles Sanders Peirce e a Teoria da Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung. Supor-se-á hipoteticamente a correlação, entre o conceito de signo e o conceito de arquétipo ou seja a correlação entre a vontade consciente (razão, intelecto, consciência, tecnologia, etc) e a vontade inconsciente (psique, instintos, sexualidade, corporalidade, inconsciente, criação, etc).

E assim, aqui será tratado e analisado entendendo que as linguagens expressivas mediadas pela tecnologia digital e aqui em especial, no caso o cinema da contemporaneidade, como fenômeno, cultural,social e existencial humano não se compreende mais nos limites das suas própria e específicas naturezas daí a multidisciplinariedade para pesquisar este fenômeno atual. Exemplo: teoria da informação, antropologia, filosofia, fisiologia da percepção, física quântica, psicologia da percepção, psicologia analítica, e semiótica.

Vamos nos valer então de contextualizá-la prioritariamente na atual e irreversível convergência destas áreas do conhecimento. Procurar–se-á em ritmo de ensaio deduzir conceitos, aproximativos, daquilo que se constituiria hipoteticamente o Cinema na Era da Informação. O que se quer é efetuar análises e diagnósticos de sua possível evolução em virtude da constituição deste novo paradigma para a percepção humana, configurando-se uma expansão da nossa consciência corporal-espacial, cujo alicerce tem uma estrutura de base, apoiada em dinâmica, virtual e amorfa rede informacional telemática: a Ecumenópolis Tecnecrônica do século XXI.
Fixação
O termo Ecumenópolis Tecnecrônica é uma associação de palavras: Ecumênico que significa Universal, de extensão planetária ou para todos os continentes e nações da Terra; Polis, termo grego que significa Cidade; Tecnecrônica é uma conjunção de abreviações das palavras Tecnologia e Eletrônica. O conceito que se forma a partir da conjunção destas palavras é a rede informacional digital que tentacularmente define uma cidade planetária virtual que não vemos como vemos a cidades concretas em que habitamos com nossos corpos físicos.É invisível e conecta mentes.


1.0 INTRODUÇÃO

Para se entender a natureza original do cinema é preciso considerá-la como uma linguagem no conjunto das linguagens a serviço da significação e da sua expansão. Ela se estrutura através de imagens-os signos icônicos, portanto aparências de objetos referentes que existem, que coexistem ou que são inventados no laboratório da mente. São os suportes para a significação do devir, a capacidade de imaginar outros ou novos possíveis. A linguagem enquanto construção de um código se inicia na percepção e se processa através da cognição. Não existe linguagem sem signos. A consciência e o pensamento são feitos de signos.
O fenômeno perceptivo e cognitivo no cinema, como centro de interesse do nosso estudo em questão, situa o autor de filmes ficcionais dentro de um processo de comunicação com o espectador. Trata-se de saber como se constitui este vibrar na mesma freqüência sensorial e emocional da platéia por intermediação da imagem fílmica. Que, por sua vez, é o signo do objeto referente que habita a psique do autor e diretor do filme como, por exemplo, um estado emocional puro ou uma elaborada e complexa significação sobre a existência humana.
O signo no cinema é centrado no Icônico e no Indicial no que se refere à sucessão de imagens mas a narrativa segue a estruturação do rigor dos signos Simbólicos, da palavra escrita. O primeiro é dirigido à porta perceptiva da visão, o segundo direciona o olhar do espectador e orienta-o no recorte do movimento simulado que é feito do mundo através da seqüência das cenas e o terceiro vem do roteiro. A vontade consciente e todo o processo criativo operacionalizado pelo autor de filmes são manifestos através destes três tipos de signos.
O que se quer é pesquisar de forma correlacionada o cinema de autor como processo de comunicação nas relações que se estabelecem entre o diretor, como emissor de mensagens codificadas através da linguagem expressiva que domina e a fruição ou recepção desta mensagem pelo intérprete-espectador e o obscuro processo criativo que emerge com seus conteúdos subjetivos, movidos pela energia psíquica de modo a exteriorizar os arquétipos. Admitimos a polêmica e a possibilidade de discussão sobre a intenção de correlacionar estas duas polaridades em jogo na criação de um filme: os arquétipos como unidades elementares que emergem do inconsciente coletivo nos processos criativos e os signos, como unidades elementares da consciência que os ordena dentro da lógica estruturadora de qualquer linguagem, a partir do processo de codificação.
fixação
O conceito de informação, no contexto da Teoria da Informação -Ela pode ser entendida como um enclos, ou seja, um container(continente), contendo(ao nível interno) em uma forma significante e com vinculação incorporada de um significado.
A realidade existencial humana se caracteriza de eventos que têm uma continuidade e um encadeamento nas relações de causa e efeito. A informação é conseqüência de uma descontinuidade de uma ruptura da sua original seqüência de causas e efeitos. O evento passa a ser interpretado. Ele é filtrado por projeções de natureza psicológica e de repertórios codificados de seus intérpretes que entram em jogo construindo-a.Sem a informação não existiria a comunicação. Ela significa compartilhar de uma ação que se construiu como informação através de intérpretes e interpretação.

Veja como se constrói a informação:
1- Captura do evento ou fato percebido e retido até a estruturação e direcionamento, através de alguma mídia.
2- configurar descontinuidades, para confiná-las a um sistema de comunicação.
3- conexão entre as informações (através da captura e retenção), e as
descontinuidades (informação) se conectam estabelecendo novas
continuidades(links).
A hipótese: a cada introdução de informação nova no sistema em rede por exemplo na Internet ela com as outras já existentes e potencialmente armazenadas se multiplicariam através das conexões, de forma exponencial bem como a extensão potencial da própria rede.

O conceito de devir da significação aqui proposto se refere à potencialidade de séries de causas e efeitos que potencializam por acúmulo ou seja estocásticamente as novas possibilidades de concepções de mundo, crenças, estruturações de regras, leis, moral, valores comportamentos, enfim projeções para frente em alguma direção como linhas de fuga criativas que passam a orientar a vontade consciente em algum movimento efetivo. São as possibilidades de novos significados sem os quais não haveria a dinâmica do processo civilizatório.
2.0 Signos, significados, significação e imaginação

A natureza humana é herdeira de uma tragédia ontológica: a de criar, procurar, e encontrar significados diante da completa indiferença do universo em que foi lançado como uma criatura pertinente a uma colossal e misteriosa criação onde sua causa motora só existe como hipóteses e várias crenças construídas.Com a significação o homem cria a si mesmo. E a significação tem raízes na imaginação: a capacidade de dar imagens aos significados e visibilidade ao invisível. O homem-animal se humaniza inventando sua própria genealogia. Para isto contorce sua língua dentro da boca, antes apenas uma componente operacional do processo de ingestão e digestão para instalar ritmos vibratórios repetitivos-a base fonética da linguagem. E ela se espalha para todo o seu corpo. E a seguir para o ambiente imediato, logo depois, à distância, em todo o seu biótopo. Projetando-se em todas as direções do espaço terrestre e celeste. E além, bem além deles, em direção às galáxias: cria-se a Infosfera. Sua causa é o fenômeno da semiose sem a qual não existiria a civilização humana. O ser humano é o signo máximo de si mesmo, de si per si. Em relação a ele e para ele e por ele, tudo se torna signo, parte deste todo inatingível mas que passa a habitar sua mente para crescer e se multiplicar criando comboios sígnicos, expandindo-se hoje, em alta velocidade, pelas redes telemáticas, formando rizomas descomunais de significantes e significações. Aquilo que designamos como a mente é uma função semiótica do organismo cérebro. Ela é a fonte elaboradora de signos. Ela é feita de signos. E tudo que vem dela são signos. Através dela e deles pensamos também através de signos. Não existe possibilidade da existência do pensamento sem signos. Trata-se assim de analisar que natureza tem este estado perceptivo em que a mente encontra-se imersa em simbiose virtual, circunscrita em várias dimensões e escalas de conexões inter-humano-digitais mediada por complexo sistema de signos em semiose exponencial acelerada. Há no entanto duas escalas desta: aquela restrita ao micro-universo do indivíduo, base operacional de sua vontade consciente e aquela extensa e em progressiva expansão macro-cósmica que se constitui nos movimentos que a consciência coletiva e estocástica, realiza desde que o ser humano se estruturou em sociedades ou seja em ordens coletivas.

fixação
A mente base terminal instalada no órgão cérebro, circunscrito à caixa craniana é, por natureza operacional, construída de signos, portanto de qualidade virtual.
Neste momento de nosso processo civilizatório, esta mente elaborou extensões de suas funções simbólicas de tal modo que adquiriu autonomia superando os limites de mentes individuais configurando uma mente de natureza coletiva: as redes telemáticas planetárias.

Mente interpretante: um complexo sistema de códigos inter-relacionados, que se instala no corpo e progressivamente atinge as complexas operações de codificação e decodificação da mente do intérprete, pessoa física circunscrita a um determinado momento histórico e lugar geográfico. O seu caráter superlativo, de modo exponencial, se refere ao pensamento humano retido ou em movimento através da escrita no hipertexto,que sem dúvida se constitui em matriz de todas as demais linguagens, inclusive as visuais.

Rizoma-têrmo extraído do contexto de significações da botânica. Seria um tipo de caule que cresce no plano horizontal de forma subterrânea. Para o nosso contexto da comunicação através das redes telemáticas por exemplo é perfeito como analogia para o fato que estas crescem de forma esponencial sem uma estrutura hierárquica à semelhança das árvores. Não há um centro do qual se irradia mas vários e múltiplos, onde os pontos se conectam com qualquer outro ponto, não por uma ordem previsível e planejada mas pelo seu forte caráter de potencia de conexão que cria possibilidades.É um sistema a-centrado , aberto, de combinações entre elementos diferenciados que não são unidades, são dimensões,direções movediças,que não é possível rastrear em busca de uma origem primordial. Situa-se intersticialmente, entre as coisas, no meio delas.É um inter-ser que cresce e transborda infinitamente para além de si mesmo.

Estocástico- qualidade de acumular, de formar um estoque, ao longo do tempo, de causas que passam a se somar, a se interagirem e se relacionarem provocando efeitos a partir de uma determinada intensidade, um ponto de inflexão em que não há mais retorno a estados anteriores. A frase popular explica esta qualidade do acúmulo: Água mole em pedra dura tanto bate até que fura. A memória de um computador pode acumular informações e armazená-las adquirindo potencialidades para realizar procedimentos operacionais só possíveis com o aumento quantitativo. A água aquecida progressivamente pode mudar de estado
líquido para o vapor e deste para o gasoso. No caso do inconsciente coletivo ele tem uma definição biológica clara, ele é a coleção de todas as memórias armazenadas pelas experiências sensoriais de todos os seres e daquelas que herdamos deles e de todas as combinações possíveis entre elas.

3.0 Ciência, incerteza, imaginação e interpretação
Em todas as áreas do conhecimento científico há sempre uma região nebulosa, uma indefinição, um lugar de incertezas e ambigüidades, mas que é, porém rica e fértil, exigindo mais da imaginação criativa do que da objetividade lógica. Ela de fato tem origem em nossa animalidade ancestral. Tem mais a ver com a atividade alimentar, portanto do corpo, da matéria. Esta obsessão do provar tem a ver com saborear que é da natureza alimentar. Afinal o saber vem do latim sapere, que deu origem a palavra italiana sapore que quer dizer sabor. Para o animal é preciso cheirar algo para garantir que é comestível. Nós usamos a palavra provar um alimento antes de comê-lo.O desejo de controlar através do conhecimento científico tem a ver com incorporar ou seja , levar para o interior da mente. De possuir o mundo material através do legítimo poder da razão analítica e prática que a sociedade humana atribuiu á comunidade científica. Mas a mente é uma função virtual do cérebro e do seu sistema nervoso central. Ela não pode ter objetos concretos. São representações deles-os signos, e há muita projeção da nossa mente sobre eles. O que temos na mente individual são construções racionais, vindas de experimentações e de projeções puramente subjetivas, fortemente ficcionais. As hipóteses científicas podem ser consideradas como jogos ficcionais, uma aproximação criativa, uma invenção humana, portanto mais um ato interpretativo daquilo que se designa como verdade absoluta. Ela pressupõe a coincidência perfeita da representação mental das coisas externas à percepção, aos órgãos dos sentidos – visão, olfato, audição, tato e paladar, com as coisas da mente. O que nos leva a deduzir o ser humano como um intérprete do universo e entender que não há verdades absolutas ou relativas, mas apenas interpretações transitórias e que se pode agir colocando-as em prática e assim criando a chamada realidade. As interpretações são de natureza efêmera, mutável e operacionais. Servem enquanto viabilizam as ações humanas direcionando-as para focos de atenção. Nenhuma delas tem o rigoroso caráter do definitivo.
No entanto a suposta verdade alcançada não é uma coincidência perfeita, mas uma aproximação ou uma sucessão de tentativas de aproximação. É como subir uma escada rolante que está programada para descer. Temos a impressão que vamos chegar ao topo dela, mas quanto mais subimos mais descemos, ou não saímos do lugar. E a escada rolante da verdade absoluta é muito mais veloz do que a capacidade humana de subir. Quando pensamos que a seguramos com firmeza, ela escapa como um peixe viscoso da mão do experiente pescador. Não há nenhuma certeza na esfera do conhecimento, não é possível definições singulares e únicas na descrição dos fenômenos através de alguma linguagem. A certeza definitiva é um ideal inalcançável. Ele existe como desejo, como vontade consciente de dominar, de controlar o incontrolável mistério do ser. Mesmo a psicologia que quer ser científica e controlar as dimensões subjetivas da mente, não o consegue, move-se em especulações e hipóteses. É mais ficção do que as chamadas ciências exatas. Deveria se chamar psicoficção.


fixação

O termo Psicoficção é um neologismo aqui criado para situar a potencialidade do processo criativo tanto na Ciência Normal (ciências Naturais e Ciências Exatas) como em Ciências Humanas em geral, diante da incerteza que envolve a natureza do conhecimento humano.É uma forma de associar o complexo processo de percepção e cognição aos encaminhamentos subjetivos dele na psique ou na mente. Como a abordagem aqui utilizada é orientada pela Semiótica o centro de interesse é o sujeito do conhecimento aqui denominado intérprete e o processo de conhecimento humano bem como as atitudes cotidianas de viver em sociedade são entendidas como comunicação. Ou seja o cinema contemporâneo e o que se anuncia em sua irreversível evolução tecnológica no futuro próximo ou distante se insere neste contexto de reflexão diante da necessidade de redefinir um novo modelo que correlacione todos estes processos dentro do universo da comunicação através da tecnologia digital ou se quisermos na denominada Cibercultura. A imagem projetada em tela e fortemente vinculada à tecnologia mecânico-elétrica do passado do cinema está prestes a ser liberada de vínculos ainda muito densos e dependentes de uma maquinaria que vem se tornando obsoleta. O signo icônico assim como todos os signos vem perdendo massa de seus significantes e praticamente se volatizando e se virtualizando de tal modo que temos que reformular nossos conceitos e nossa linguagem para descrevê-los.
Aos poucos vai se revelando a proximidade dos processos antes misteriosos da psicologia com os processos extremamente racionais e lógicos da tecnologia de produção e vinculação da imagem através da comunicação. Trata-se da convergência entre dados do estado de consciência com estado de inconsciência. A tecnologia que produz as imagens digitais ou informatizadas vem da lógica matemática –os signos simbólicos que estão na infra-estrutura operacional e construtiva dos signos icônicos. Estes, no entanto, são resultantes dos arquétipos que emergem das profundezas do inconsciente coletivo participando construtivamente tanto dos significantes quanto de seus significados. De alguma forma a Física Quântica se aproxima desta interpretação quando coloca a hipótese de que a chamada realidade é construída pelo observador ou melhor pelo intérprete. Isto nos faz pesquisar o devir do cinema como o encontro entre a Imagem como objeto com a Imaginação ou seja a sua própria ação causadora. Que é uma interpretação conduzida desde o inconsciente coletivo até a superfície luminosa dos Signos Icônicos do cinema. A imaginação é uma interpretação muito especial dos eventos do cotidiano e das informações retidos na memória coletiva social. Mas sua elaboração é conduzida por saltos criativos de superação do status quo ou das formas perceptivas e cognitivas dominantes. Sua tendência é ir além bem além das formas constituídas da existência em um momento dado. Daí a razão de seu poder ficcional. Os chamados efeitos especiais digitalizados estão a serviço de sua realização efetiva no plano material dos significantes. Ele ousam e ousam cada vez mais reeducando-nos visualmente para uma percepção expandida e de alta velocidade de síntese. Atualmente provocam a vertigem que nosso corpo sente, atado por sua massa à inexorável ação da gravidade diante dos artifícios sofisticados da realidade virtual. A ficção e os efeitos especiais do mundo digital da Cibercultura formam um par perfeito e inseparável daqui para a frente um empurra o outro para mais e mais adiante em um uma ação superlativa de auto superação completamente indiferentes aos limites do corpo. Enfim esta é natureza da mente, totalmente constituída por signos, que em semiose exponencial conspiram para uma existência própria além do corpo e da própria matéria. Podemos arriscar talvez a dizer que o foco é a anti-matéria
o território da imaginação.

4.0 Hipóteses, ficção científica, subjetividade, relação triádica de signo

Desta forma, pressupor, imaginar possibilidades e transcender paradigmas pode fazer emergir soluções para impasses intransponíveis pela razão analítica e prática da ciência normal. Há um forte componente criativo e ficcional na hipótese científica. Sabe-se que Einstein dizia preferir a imaginação ao conhecimento. Os filmes designados como de ficção científica exercitam declaradamente a superação do consagrado e do estabelecido, imaginando novos possíveis, inclusive simulando o seu próprio devir como entretenimento. Aqui há o exercício criativo de construir uma realidade imaginária virtual atualizando-a ao executá-la no plano material. Corresponderia ao ato de imaginar como um fazer potencial e ao fazê-lo de forma simulada, através das imagens cinematográficas da ficção científica, a sociedade se faz e se refaz continuamente. Os cineastas gostariam de serem considerados como criaturas fora do tempo e do espaço, como puros criadores, inventivos, irreverentes, neutros, apolíticos, irresponsáveis em relação a serem conservadores do status quo.
O cineasta, é conduzido pelo sua subjetividade por querer se igualar ou se identificar à subjetividade de seus espectadores para estabelecer sintonias e sincronicidades das expectativas e dos desejos ainda não manifestos mas potencias em gestão. E o que faz é pura ficção mesmo quando elabora um sério documentário.
Reafirma-se aqui que não há Ciência que não seja humana, combinando-se a condição do homem como um intérprete do Universo, com aquela em que ele se projeta a si mesmo e sua própria condição existencial, sobre aquilo que conhece e o determina para ser por ele determinado a seguir. Entende-se aqui o homem como intérprete dentro da Relação Triádica de Signo de Charles Sanders Peirce em que o ser humano é um intérprete de absolutamente tudo que se manifesta ao seu redor inclusive dele próprio como ser. Não como tabula rasa passivo, mas construtor de seu universo de crenças através de uma complexa interface de vários códigos herdados, ao longo do processo de construção da civilização, de seus ancestrais mais remotos.


5.0 Correlacionando Psicologia Analítica e Semiótica

Entendendo e querendo analisar o cinema como fenômeno perceptivo, suas correlações com a cognição e o comportamento humano resultante de sua fruição, justifica-se o duplo referencial de abordagem: a Teoria da Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung e a Ciência dos Signos. O que se quer é pesquisar de forma correlacionada o cinema como processo de comunicação nas relações que se estabelecem entre o diretor, como emissor de mensagens codificadas através da linguagem expressiva que domina e a fruição ou recepção desta mensagem pelo intérprete-espectador e o obscuro processo criativo que emerge com seus conteúdos subjetivos, movidos pela energia psíquica de modo a exteriorizar os arquétipos. Admitimos a polêmica e a possibilidade de discussão sobre a intenção de correlacionar estas duas polaridades em jogo na criação de um filme: os arquétipos como unidades elementares que emergem do inconsciente coletivo nos processos criativos e os signos, como unidades elementares da consciência que os ordena dentro da lógica estruturadora de qualquer linguagem, a partir do processo de codificação.
A impressão á primeira vista é que esta indeterminação da certeza da realidade ser de um único e determinado modo parece caracterizar uma incompletude da Teoria quântica, no entanto trata-se de sua maior virtude, pois é coerente com a própria natureza indeterminada do universo. A consciência humana é uma ilha no oceano do inconsciente. A razão analítica e prática é filha da matéria mas suas raízes que a alimentam estão drenando energia vital das regiões abissais da anti-matéria, do invisível, dos sentimentos, das emoções, das sensações... Enfim, do não racional, dos sonhos, do imaginário, do oculto, mas presente em tudo e em todos – do criativo, da criação.
Trata-se então diante disto de estabelecer analogias formais entre o sonho e o filme como uma espécie de sonho coletivo ou de um sonho para fazer sonhar. Um estímulo sensorial construído pela linguagem, pela codificação lógica dos signos apenas como força motora para atravessar o aparato perceptivo e atingir o centro do sistema nervoso central e ser decodificado e restituído a um universo subjetivo de pura emoção.O conjunto de filmes que tenham esta capacidade criativa de seus autores e tecnológica de propiciar visões transcendentes são como um grande e infinito mosaico ou ainda um quebra cabeça cósmico em que cada fragmento de cena componha um todo não perceptível de uma só vez. Este pode ser espacial ou seja os fragmentos se compõem como uma continuidade na mente do espectador em um espaço poli/pluri/multi/dimensional ou melhor holográfico, cinético e mutante.


fixação

Teoria da Física Quântica: construída no final da década de 20 para lidar com
o átomo e sua estrutura e para dominar o núcleo, cerca de dez mil vezes
menor do que ele próprio:


1- Empresta um sentido amplo quando se pensa o espaço materialmente em termos de substância, elementos e partículas sólidas, configurando as bases da aparente tridimensionalidade e solidez da realidade empírica.
2- A realidade é o que se oculta por trás destas, incorrendo em desvios no plano conceitual fazendo surgir o impotente sentimento da incapacidade de alcançarmos a realidade profunda(ou segundo Kant : a realidade em si).
3- Realidade Profunda é apenas uma referência de natureza psíquica à necessidade de um plano de apoio para um movimento em profundidade além e abaixo da manta sígnica e revela um obstáculo epistemológico denominado por Gaston Bachelard de “substâncialista” ou seja a
dualidade da aparência e da essência em que a essência coincidiria com a
singularidade da verdade absoluta e única da realidade em estudo.
4- A aparência é apenas a pele, a casca, o fenômeno que irrompe diante da
estrutura perceptiva, da consciência e que recobre a essência.
5- A essência é apenas mais uma aparência.
6-Oposição a um mundo mecanicista, determinista, ancorado a extensões
biocorporais, de vínculos musculares e portanto intensamente
substancialistas.
7-Teorema de Bell(John Stewart Bell) ou seja : a estrutura da realidade física
não é local ou melhor não há um espaço físico determinado para os eventos
humanos no plano material. O que se oculta sob o manto fenomenológico
das aparências é uma outra realidade, mais veloz do que a luz.

7-São necessárias conexões que se realizassem mais rápidas que a luz. Isto significa que a observação da realidade e sua medição terão atributos específicos desta que surgirão no exato momento da atenção e vontade do observador, ou seja, os objetos comuns não teriam atributos próprios, ou seja, o contexto imediato da observação é constituído de entidades situadas além em regiões distantes, mas suficientemente alcançáveis à velocidade da luz.

6.0Cinema, tecnologia, imersão
Nós vamos ao cinema hoje em dia para nos suspender durante algumas horas dos modos de comunicação habitual, de suas rotinas operacionais sobre o nosso aparato sensorial, principalmente o visual e o auditivo. A natureza do conjunto dos elementos constitutivos Quaisquer que sejam os recursos técnicos de persuasão ou potencialidades hipnóticas de imersão do espectador ou até que seja do próprio conteúdo de um filme ou de sua forma e intensidade expressiva, o que ele objetiva fundamentalmente é a produção de um certo tipo de comportamento performático resultante.
O filme mudo conseguiu, por exemplo, exprimir de forma muito mais contundente e autêntica do que nos primórdios do filme falado as complexas interjeições e intensidades das manifestações dos desejos humanos em suas relações com o imaginário social. Ainda conservava aquilo de que fora investido por sua magia de reproduzir a aparência do mundo e dos homens com um realismo de um duplo sem substância, sem densidade e manifesto através da luz e do movimento. A evolução tecnológica aplicada ao cinema enquanto invenção ainda não seu conscientizara de seu poder de cenário significante em progressiva expansão, dilatando-se em ambientes especiais como ocorreu com o Cinemascope, o Cinerama , o Imaxe, o Omnimax esférico e o Cinema 3D. Nestas condições, sua potencialidade radical de então, não havia ainda vislumbrado o horizonte de suas possibilidades ou tudo aquilo que poderia realizar e conseguir como resultado desta expansão ou de sua ação de imersão do espectador em seu fantástico universo imagético. As invenções sucessivas do filme falado, da cor, da qualidade sonora das salas de exibição e do invento da televisão , etc. na medida em que enriqueceram as possibilidade de expressão das subjetividades criativas de seus autores, conduziram o poder de reforçar controle persuasivo do cinema sobre um público ainda solidário e fiel .E valer-se dele como um instrumento privilegiado para a expansão de seu poder de estimular o devaneio e o sonho coletivo com mais recursos a seu favor. É interessante sob este ponto de vista, de constatar que a televisão não conseguiu absorver o cinema como se temia, mesmo com a qualidade de definição da sua imagem ampliada em progressivas e grandes telas, aumentando os planos de caracterização da profundidade do espaço cênico e das ações nele se viu obrigada a se conformar a ser uma extensão das fórmulas do cinema como reprodução de sua na potência em nível de um dos seus componentes operacionais como subsistema de comercialização de sua ação na escala doméstica.
Então ainda compramos um lugar nas salas de exibição do cinema para esvanecer-se através de qualquer personagem exibido nas imagens gigantee deles e se deixar arrastar em qualquer tipo de aventura prevista pelo roteiro, sem resistência e com absoluta perda da noção do tempo cronológico. Porque de fato a modelagem que resulta desta vertigem a bom termo não acontece sem deixar traços:o inconsciente pessoal do espectador se encontra povoado de super heróis,cavaleiros medievais,agentes secretos, de tiras, de violentos assassinos, de homens e mulheres apaixonadas, de Brads Pitts,Tom Cruises, de Angelie Jolies, etc.


fixação

Cinemascope -introduzido em 1953 pela 20 th Century Fox.É o filme rodado em projeção de formato alargado através de lentes anamórficas que durante a filmagem comprimem uma cena panorâmica e na projeção outra lente vai descomprimí-la.

Cinerama- se caracteriza por uma imensa tela curva, cobrindo 180 graus, que apresenta uma imagem cinematográfica aparentemente única, mas que, de fato, é projetada por três aparelhos. Pouco a pouco, esse sistema foi
substituído pelo 70mm e, hoje em dia, pelos sistemas canadenses Imax e Omnimax.

Imax - Sistema de projeção, originado no Canadá, através de tela de 16 metros de altura e 22 metros de comprimento proporcionando interação máxima com o espectador.

Omnimax esférico-Imenso domus revestido por tela em que é projetado o filme em 180 graus. A platéia é posicionada dentro dela de modo a ter uma total imersão dentro das cenas.


Cinema 3D- sistema de projeção para que se obtenha a sensação de tridimensionalidade usando óculos especiais tipo Anáglifo- a duas cores. Utilizam-se filtros de cores complementares, como vermelho e azul ou vermelho e verde. Trata-se de imagens estereoscópicas explorando as potencialidades do nosso sistema de visão binocular aumentando a sensação de profundidade.









7.0 Cinema, sonho, inconsciente pessoal, inconsciente coletivo a máquina de sonhar acordado

Na sala de exibição do cinema, em nossa confortável poltrona, estamos aparentemente acordados mas sonhando, permitindo à consciência se manter vigilante assim como ela o faz ao longo do dia, só que agora observando e participando da dinâmica existencial humana, passando pelo inconsciente pessoal para o inconsciente coletivo da humanidade, exteriorizado e compartilhado pela máquina de produzir sonhos. O corpo do espectador- sonhador assumiria um duplo virtual,construído pela potencialidade imersiva dos efeitos especiais, como um Avatar de um jogo de computadores. Este então teria uma vida interior dentro do sonho-acordado, intensa e rica em experiências inimagináveis aos sonhadores passivos que somos quando dormimos.É o acender de uma faísca visionária detonadora ao longo de um percurso na caverna subterrânea e escura da sala de cinema, em que ele se encontra, escavando o acesso a imagens que não representam mais a realidade externa mas uma irrealidade de natureza subjetiva Trata-se de um viver acordado vivenciando o emergir de experiências vivenciadas no inconsciente coletivo que emerge estimulado pela inventividade de seu criadores, contribuindo com a inteligência do espectador- sonhador, pois ele entra em contato com todo o conhecimento armazenado ao longo de bilhões de anos do universo e exposto através de representações, expressões ou recordações criativas dos fazedores de sonhos: os diretores, roteiristas, cenógrafos e técnicos da produção,os atores e atrizes. A vida e o cinema contribuem através dos sonhos que geram um treinamento para sermos espectadores-atores e exercitarmos a recordação do que já fomos para entendermos o que de fato somos. No cinema como nos sonhos, o sonhador, após acordar, pode relatar através de descrições ou narrativas detalhadas o conteúdo essencial deste. No entanto o fundamental escapa ou fica uma sensação indescritível que permanece incomunicável aos outros que no entanto nos atinge profundamente e nos transforma, não pela consciência mas através de um processo puramente emocional como uma dor ou um prazer que não pode ser compartilhado mas que cala fundo, que atinge a alma.

Nenhuma experiência vivenciada por qualquer ser vivo, mesmo um simples microorganismo ou mesmo uma bactéria qualquer se perde. O inconsciente coletivo é uma super memória de tudo que foi vivido e esquecido ou mesmo reprimido quando é uma experiência negativa que o consciente do ser vivo quer esquecer. O inconsciente é estruturado como uma linguagem. Este conhecimento não obtido através da razão, do intelecto, estaria disponível através do sonho e em estados alterados de percepção e consciência. Só que ele vem através de narrativas simbólicas, que por não serem facilmente interpretáveis se perdem e se dissolvem no esquecimento retornando para o lugar de onde vieram, sem ter contribuído em nada para a consciência.
Sabe-se que a psicanálise, no final do século XIX, queria recuperar esta sabedoria trazida pelos sonhos e curiosamente, em paralelo sem necessariamente estar ainda consciente de seu poder evocador da memória ancestral, o cinema também no mesmo período. Quando dormimos nos fechamos para dentro, não ouvimos e não vemos o que nos conecta com a lógica dominante do estado de vigília. A conexão passa a ser com esta região que é psíquica, subjetiva. E ao mesmo tempo em que ela é muito pessoal, ela é também coletiva. Vemos e ouvimos com os olhos e os ouvidos da alma. A atividade de sonhar é uma forma de repouso do espírito humano diante das atividades racionais e lógicas da consciência, ao longo do dia. As máscaras sociais de nossos personagens cotidianos se dissolvem e o que passa a dominar é apenas o ser atrás delas. As máscaras e a cenografia reafirmam o status quo e dão o sentido que orientam as ações humanas. Algo de similar se passa quando estamos assistindo a um filme completamente imersos e entretidos de modo a nos esquecermos que estamos acordados. Tudo pode se parecer com um sonho consciente. O que nos leva a pensar que em um filme nós estamos também sonhando. Ou melhor, que nós estamos sonhando que estamos sonhando. Ou que de fato estamos acordados dentro do sonho. Assim de alguma forma nos tornamos visitantes autorizados do mundo dos sonhos. Os sentimentos são nossa única e efetiva realidade. E do ponto de vista a partir deles não há diferença entre estarmos acordados ou dormindo e sonhando. Não temos como diferenciá-los entre si, pois se igualam diante do que se passa em vida – um contínuo perceber, representar e sentir. Considere-se o conjunto destes estados visionários programados, como alteradores da percepção e da consciência quando referenciados a partir de um padrão médio de percepção, controlado pela razão prática sintonizada com a lógica do status quo dominante. Estes são os fomentadores da experiência visionária, entendida como uma necessidade de transcendência inerente à condição humana, não importando em que situação se faça necessária.

8.0 Sentimentos, visão interna, sonhos e imagens holográficas
A ordem interna dos sentimentos é complexa. Não pode ser racionalizada ou quantificada. Não pode ser alcançada ou compartilhada por várias pessoas ao mesmo tempo e com a mesma qualidade ou intensidade. Os sentimentos são o que há de mais precioso no ser humano. Somos um feixe de sentimentos. Eles são fios muito finos que ao longo deles, no seu comprimento, há variações de diâmetro e texturas. São os humores que os tornam assim.
Ao sonharmos, nossos sentimentos entram em conexões e se tornam imagens holográficas que parecem tão reais como aquelas que vemos ao acordarmos. Elas tem tridimensionalidade e profundidade.Elas nos dão a ilusão de espaço e de presença nele. No entanto, se apresentam como imagens para nossa visão interna mas de fato são sentimentos puros transvestidos de formas, cores e narrativas. Estas funcionam como todas elas, são estruturadas em linguagem verbal. Para haver percepção e cognição é preciso que haja linguagem em ação. Não haveria o conhecimento sem uma linguagem que o estruturasse. Como nos contos de fadas, como nas histórias da literatura, ou em textos de dramaturgia. Estas narrativas organizam a seqüência de sentimentos que são necessários para o sonho daquele momento do sono do sonhador. Ele precisa sonhar, devido ao seu contexto pessoal, certa narrativa com aquelas imagens. Elas são associadas por combinações químico-elétricas no sistema nervoso central, acionando o depósito ou estoque de experiências sensoriais armazenadas ao longo do dia, das semanas, dos meses e dos anos da vida de uma existência humana que é original e única pela qualidade destas combinações de sentimentos. Podemos ter uma determinado entrelaçamentos dos fios dos sentimentos, suas extensões, suas texturas, suas cores e seus diâmetros e números de nós para cada vida humana. E a cada geração, temos um número infinito de possibilidades de combinação destes fios e dos feixes de sentimentos resultantes de acordo com as conexões que surgirem dos relacionamentos inter e intra-pessoais cotidianos. Com isto temos as narrativas coletivas que nós humanos chamamos de história. Em uma região submersa construída pela psique, tão profundamente localizada abaixo de trilhões de filamentos do sistema nervoso central-os dendritos, conectados e distribuídos pelas células nervosas-os neurônios, em camadas, é possível ver a paisagem onírica do imenso estoque de sonhos ancestrais armazenados pela memória. Estes podem ser ativados se um sonhador tiver a necessidade de uma narrativa mais histórica, com cenografias de época. Afinal, se trata de um teatro psíquico e à semelhança com qualquer encenação cinematográfica ou teatral convencional que tivesse que recorrer a montagens históricas o faria através de figurinos, móveis adequados e toda a ilusão que recuasse a um determinado período do passado da humanidade. Mas, isto é só o começo do entendimento de como este poderoso organismo onírico hipnótico e tentacular funciona. No entanto, é bom esclarecer que tudo no universo em que vivemos pode em hipótese ser considerado como um jogo cenográfico e no cinema se torna fato enquanto finalidade primeira fundamental para inicialmente atingir a consciência em estado de vigilância mas a seguir imergindo-a em um torpor sedutor de um fluxo ininterrupto de imagens sedutoras de progressiva qualidade de definição, mergulhando-a em níveis de profundidade da subjetividade ou da interioridade psíquica, assim elevando-a para níveis de maior clareza sobre as finalidades da existência humana. É uma troca a ser feita quando nos recordamos. Isto é, trocar finalidades por consciência de possibilidades. Esta é a razão pela qual cada período da história das diferentes civilizações humanas, que povoaram este planeta se cristaliza em aparência, em modo de se vestir e se alimentar, em comportamentos sociais e afetivos, diferenciados em arquiteturas e ambientes físicos ou paisagens completamente variadas.
Assim se explica e se justifica a forte semelhança dos ritmos existenciais e psíquicos com as artes cênicas e cinematográficas. Nós somos atores em busca de personagens e textos para encenar. O grande perigo, porém inevitável, dos seres humanos: acreditarem na encenação como realidade última e como um poderoso sistema de estímulos sensoriais para moldar o nosso ambiente, de modo a moldar nosso comportamento e transformá-lo em crença definitiva e até extremamente fanática. O sucesso no cinema está aí, comprovado pelas milionárias bilheterias dos lançamentos de fins de semana. Multidões são arrebatadas e seduzidas pelo jogo do imaginário, esquecendo-se de si mesmas, mergulhando assim em uma simulação de possibilidades.
Os sentimentos individuais, quando se exteriorizam e se inter relacionam, se materializam e se racionalizam através das idéias. E assim se tornam objetivos e objetos concretos. Poderíamos entender que toda a materialidade do universo que nós chamamos de física é conseqüência dos sentimentos que não são físicos. Os sonhos são feitos de uma misteriosa consistência física. E aqui o físico não é entendido como a manifestação de algo que de fato existe e pode ser percebido pelos cinco sentidos. Sua consistência vai além do físico. É totalmente psíquica. E portanto, apesar de ser uma realidade capturável pelos sentidos ela tem o poder de atingir diretamente a cognição e se tornar absolutamente real como qualquer manifestação física. Eles reagem de forma alquímica com os conteúdos psíquicos disponíveis. E aí, algo de essencialmente humano entra em jogo-a capacidade da mente de elaborar sofisticadas imagens, representações figurativas alimentadas por fantasias de natureza espacial e temporal. E todo este vivenciar íntimo e pessoal do mundo das imagens se apóia em alicerces emocionais que não são acessíveis à razão prática e crítica. No estado de vigília as personagens sociais são atravessadas e atingidas além de suas máscaras por fortes sentimentos que influenciam suas decisões. Os sonhos humanizam os seres humanos desmobilizando a razão prática que é fria,operacional,funcional e calculista. Os sonhadores mais sensíveis e mais suscetíveis a estas combinações psico-imagéticas, quando acordam se sentem plenos de inspirações e podem compor uma sinfonia, uma obra literária, uma pintura, uma escultura, uma dança. Enfim, todas as possibilidades expressivas da criação artística. Ou podem sentir uma energia potencializadora de atividades físicas com habilidades excepcionais para desempenhos corporais. Os sonhos de povos da antiguidade guiaram os reis e os guerreiros em suas decisões políticas e eram aceitos como oráculos que previam e orientavam ações e acontecimentos.

O sonho como o cinema enquanto procedimentos similares do ponto de vista perceptivo e cognitivo quando desdobrados nas profundas regiões da subjetividade conduzem a aspectos cenográficos, ao teatro psíquico feito da superficialidade periférica das imagens construídas pelas narrativas. O ato de sonhar no cinema apesar da suposta aparência de ser uma atividade solitária em verdade é uma atividade potencialmente compartilhada e passível de ser interativa ao mesmo tempo. No entanto, o que vemos aqui diante de nós é como o mundo aparece, como projeção cenográfica da mente. A seriedade científica quer a objetividade de tudo. E o Universo a que se refere o cinema é como nos sonhos. O que vivenciamos neles não é o real mas revelam significados de natureza emocional. E estes são autênticos pois nos atingem profundamente e nos motivam a ações concretas, a comportamentos do existir.

9.0 Tecnologia e a projeção cinematográfica, superando os limites da percepção
A imersão perceptiva, afetiva, sensorial do cinema aponta para uma realidade ancorada em um estado de supra consciência. Neste, não temos os aspectos que caracterizam o mundo de nossa percepção banal, cotidiana. É um imenso oceano onde se espelha o céu. Os dois sem forma, transbordando além de qualquer limite, amorfos e sem diversidade ou multiplicidades ou diferenças, apenas a imensidão sem contornos, única, infinita e absoluta. Há um esforço tecnológico que vem sendo perseguido no plano da materialidade constitutiva dos ambientes de projeção, para alcançar tal estado.
Falamos ainda em projeção mas apenas para completar todo o processo dedutivo a ser construído. A tecnologia quer e pode realizar superação dos limites da tela branca da projeção, herdeira da moldura das pinturas que retinham, na superfície de suas tessituras e tramas, um único ponto de vista ou apenas uma única cena a ser vista pelo observador. A atual projeção cinematográfica, desterritorializa as coordenadas perceptivas. Torna-se um não lugar mutante e sinestésico. Em todos os sentidos desde a tensão perceptiva até o trabalho da cognição e em estabelecer uma ordem um nexo, um logus. De dentro para mais dentro da projeção através de recursos de envolvimento da razão através da narrativa e para fora rompendo os limites da lógica de situação no espaço físico, em que o corpo resiste por inércia e ação da gravidade a não se entregar aos enlevos da imaginação que quer ir além do sólido, seguindo sua vocação de fruto virtual e sígnico da natureza da mente. Sem o suporte da presença de um outro ser concreto e ali conivente atestando sua existência, a subjetivação do espectador tende a se tornar um tipo de alucinação, ela não se concentra mais sobre a rígida dualidade sujeito-objetos, ela explode em uma multiplicidade de polos, mesmo quando nós nos fixamos sobre um único personagem que no conduz a partir da narrativa . Não é mais uma questão, propriamente falando do sujeito espectador, pois o que é emitido por estes polos, não é mais somente um discurso, mas de intensas emoções de toda espécie, de constelações de recursos de visibilidade, de cristalização de afetos e efeitos no plano do imaginário. O que acontece aqui são os conflitos do ser ao longo da vida e que se tornam aquilo que se quiser, tudo que a imaginação permitir. Esta massa de luz e efeitos visuais pegajosa se molda de acordo com a intensidade das tensões, dos fantasmas internos que aqui são exorcizados pelo cinema e suas narrativas visuais e sonoras. Afinal aparentemente são apenas projeções espetaculares. É um confinamento psíquico no qual atual espectador se sente a beira da explosão, por não mais querer se limitar às janelas de uma cela a que foi confinado durante um longo tempo, como público das exposições de pintura, de escultura e gravuras, do visor da máquina fotográfica, da boca de palco do teatro italiano,da faixa preta das primeiras telas,do trambolho do desengonçado e velho aparelho de televisão com seus tubos imensos ainda condicionadores de hábitos no ato de fruir da imaginação coletiva. Quando estamos abertos para ver com a visão psíquica, somos cegos e surdos ao que vem de fora mas ávidos de expectativas visionárias aliciados pelos efeitos especiais.



10.0 Cognição, nexo da significação e a construção da realidade imagética

A direção do processo cognitivo aponta para dentro da memória. Os pensamentos percorrem toda a construção feita de puras idéias. Como tijolos de um imenso edifício, empilhados um a um, lá estão gerações inteiras de conhecimentos humanos, armazenados por vidas dedicadas e finitas à elaboração de sofisticados e sutis fios de argumentos. É a pura lógica. Todas as palavras que já foram pensadas, faladas e escritas por algum ser vivo da nossa espécie, estão lá, sólidos alicerces daquele edifício que se espalha por uma impecável ordem geométrica, em todas as direções para onde se olha. Tudo que foi sentido pela percepção de bilhões de homens e mulheres em todas as idades de suas vidas, desde o início dos tempos, não foi perdido. Tudo está lá, ordenado pela cognição tanto em qualidade e intensidade dos sentimentos vividos. Até a menor célula de um micro organismo, resultado de alguma reação a algum estímulo sensorial, lá fica retido. No entanto a mente humana seria completamente incapaz pela razão analítica e prática, pela consciência, de alcançar com precisão como tudo começou e recompor a seqüência de causas e efeitos que se sucederam em uma cadeia infinita de eventos.
É preciso entender com se constrói a lógica que sustenta a periferia da realidade imagética, definindo um nexo referencial para direcionar a vontade consciente.
Palavras, em todos os idiomas de todas as nações já existentes, de todas as civilizações, que saíram de bocas e corpos humanos vivos formando frases para sustentarem os pensamentos, lá estão ordenadas e classificadas em uma espécie de imenso arquivo. Ele não é fechado, pois a cada fração de segundo, mais palavras chegam de todas as nações para onde o super arquivo aponta.É como um ser vivo feito de palavras. Ele cresce e reordena incessantemente as palavras já instaladas com as que chegam, de acordo com a qualidade e intensidade dos significados a que se ligam. Aqui se constroem os significados que orientam as ações das pessoas.
Todos os movimentos coletivos são direcionados, tem sentido, são convergentes. As atitudes de cada um fluem como um rio para o grande oceano da lógica, para que se estabeleçam acordos, leis, normas, a moral, as regras de comportamento, enfim para que estejamos acordados (de acordo) haja uma sintonia de vontades pessoais. A vida da multidão precisa de uma ordem, senão haveria o pânico e a violência. Haveria destruição por toda parte. O ser humano precisa de crenças e de leis, precisa de sentido para continuara existir. Estamos dentro do arquivo de todos os arquivos. O pensamento dominante. A superestrutura ideológica. Aquela que ordena os significados que sustentam a vontade individual como subsistema da vontade humana coletiva. As palavras na infância são impostas à mente de forma dolorosa. No momento em que ela está ainda em formação e aberta. Elas substituem progressivamente sentimentos, gostos, sensações táteis, olfativas, auditivas e visuais. O que nos primeiros meses e primeiros anos de vida é sempre um espetáculo dos sentidos totalmente confuso, mas criativo e divertido, com o crescimento da criança que se torna adulta, ele se transforma em algo definido, monolítico, limitado e recortado por símbolos rígidos e secos. O mundo como um borbulhar de imagens, sons e cheiros, é trocado por imensos arquivos infinitos de palavras e números –os signos simbólicos. Elas formam com as regras de combinação da sintaxe e com as regras da gramática, um super código, matriz de todos os códigos. Base e fundamento de toda linguagem. Este determina as possibilidades do pensar dos indivíduos, sempre dentro das combinações previstas que obrigam os sentimentos e as emoções a se associarem com as condições oferecidas por esta forma material de comunicação humana. As formas informatizadas da inteligência o demonstram por serem estas extensões do pensamento na consciência, reproduzem, ao nível operacional,as potenciais conexões entre textos construídos, com signos simbólicos: as palavras escritas. Constitui-se assim o hipertexto ,matriz da hipermídia que garante a base para associações entre significados de informações, codificadas em textos, de diferentes naturezas, separados no espaço e no tempo.


11.0 O cinema na Era da Informação e os construtos psicoficcionais

O cinema da era da informação se estrutura como um espaço de imersão construído por rígidas e consolidadas tecnologias narrativas: os construtos psicoficcionais. O inconsciente coletivo emerge do profundo estado do sono para o estado de vigília. Os efeitos visuais da alta tecnologia digital transformam o espectador passivo em ator,diretor e roteirista. Não existe mais o projetor atrás dele ou acima dele. Não se separam a tela do projetor e não há mais distância entre eles.É a realidade virtual holográfica. Como nos sonhos. O sonhador cria seus personagens que são ele mesmo, ou faces ocultas de sua personalidade que emergem diante da luz saindo de dentro da sombra. A narrativa e a dinâmica da linguagem imagética se conectam drenando os significados que o espectador diretor quer naquele momento dos complexos filamento sensoriais que constroem a sua paisagem psíquica. Eles interagem em sincronia. Não há mais a dualidade. Apenas a convergência sinestésica entre os sujeitos e estes com os seus objetos que se tornam sujeitos por sua vez. Tudo se movimenta e todos ao redor. O espectador não está imobilizado ele se move na ação bem como os outros espectadores que ao interagirem provocam o movimento do próprio ambiente que não é mais estático. As subjetividades antes encapsuladas nos claustros psíquicos dos egos de cada um são compartilhados simultaneamente. Todos estão conectados em redes neurais que se comunicam continuamente através do domínio da tecnologia digital em potencializar o máximo de interatividade entre eles. A experiência sensorial seja visual ou sonora torna-se excêntrica. As fontes de estímulos sensoriais estão dissolvidas e espalhadas sobre uma sutil pele invisível. A realidade é estendida, ampliada buscando a similaridade das propriedades do real. É desconstruída a moldura que define as descontinuidades e as localizações em pontos fixos no espaço. Eles mesmos se deslocam em arranjo caleidoscópicos e estereométricos. Os contornos desaparecem mas os contrastes entre luz e sombra se definem com clareza. A velocidade da percepção e dos processamentos da cognição é a da luz. A oposição do dentro e do fora, do contido e do continente já não existem formam uma continuidade de descontinuidades. O sonho da Arte Total é alcançado não há mais fronteiras entre as várias linguagens expressivas.

fixação
Analisemos a dualidade conceitual da Forma através das características de descontinuidade e continuidade do espaço bem como a correspondente dualidade do interior e do exterior na perspectiva da percepção humana. Esta dualidade tem origens ancestrais, na aurora da criação e é inerente aos que nascem de um ventre materno, ou seja, é decorrência de uma base vital de experiência intra-uterina de unificação rompida e pluralizada na dualidade semântica do dentro e do fora. Estas dualidades são de interesse para o entendimento de questões decorrentes em sistemas de comunicação na Cibercultura quanto à percepção,cognição, navegação, interatividade, imersão e realidade virtual. Lembrando que a palavra virtual tem origem no latim medieval: virtuale, cujo significado é o que existe sem exercício ou efeito atual, como algo potencial que existe como faculdade, com indícios claros de eminência de realização.


Revisão dos Conceitos Apresentados

Comunicação, Informação, Código, Linguagem, Percepção, Cognição, Signo, Semiose, Cibercultura, Real,Realidade, Virtual, Atual, Sonho, Imaginação,Verdade Absoluta, Interpretação, Intérprete,Arquétipo,Inconsciente Coletivo,Inconsciente Pessoal, Estado de Vigília, Estado de Percepção e Consciência Alterados, Experiências Visionárias, Holografia, Psicoficção
Questões

1-Deduza a partir dos conceitos elaborados, deste capítulo, o conceito de Psicoficção. Relacione-o com o cinema da Cibercultura.
2-Explique com suas palavras o conceito de Signo. Descreva as características dos três tipos de Signos que existem e seus efeitos na dualidade correlacionada entre percepção e cognição. Relacione-os entre eles e circunscreva-os em suas ações na linguagem do cinema.
3-Deduza as relações entre Signo e Arquétipo e como os dois são fundamentais à proposição: o cinema como máquina de sonhar acordado.
4-Veja o filme Até o fim do mundo (until the end of the world) do diretor Wim Wenders. Ano 1991. Alemanha, França, Austrália. Estabeleça e explique o porquê das relações entre os conceitos deste capítulo e o roteiro do filme.
Ernesto Giovanni Boccara é Livre Docente pelo Instituto de Artes da Unicamp. Arquiteto, Artista plástico e Designer. Leciona na FAAP-SP, Centro Universitário Senac-SP e Instituto de Artes da Unicamp.

Referências


BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico. R. de Janeiro, Editora Contraponto. 1996.
BOCCARA, Ernesto G.Ciberespaço:Análises e reflexões para a construção de modelos descritivos de sistemas hipermidiáticos.in O chip e o caleidoscópio, pag109. Org. Lucia Leão. São Paulo. Editora Senac.2005.
DAMÁSIO, Antonio. O mistério da consciência. São Paulo, Editora Companhia das Letras, 1999.
DEL NERO, H.S .O sítio da mente. São Paulo, Editora Collegium Cognitio,1997.
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GUATARI,Felix. O divã do pobre. Revista Communications n.23.Psycanalise et Cinema. Ed.Seuil. Paris,1975
JUNG, Carl Gustav. O espírito na arte e na ciência Petrópolis, Editora Vozes,1991.
_______________________. A natureza da Psique . Petrópolis, Editora Vozes, 2000.
LÉVY, Pierre. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. Rio de Janeiro. Ed. 34. 1993.
MATURANA , H.R.; VARELA J. F. A árvore do conhecimento. São Paulo, Editora Palas Athena, 2001.
PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. São Paulo, Perspectiva, 1990.
SANTAELLA, L. Cultura das Mídias. São Paulo, Razão Social, 1992.










REFLEXÕES SOBRE A SEMIÓTICA e a Música: em John Cage e Caos

Prof.Ms.Fábio Pligher (sob orientação do Prof.Dr.Ernesto G. Boccara-em mestrado em Artes pela Unicamp)



semiótiCA/ge/OS
semióticageos
semiótiCAgeOS
semiótiCAGEOS
semióticageOS

"Por volta do ano de 1945 eu ainda pensava que a música tinha que comunicar algo."
John Cage.


Cage com essa frase abre uma discussão que é o foco deste trabalho: A música comunica algo? Se comunica, como acontece tal comunicação?
Mais do que uma simples pergunta conceitual de um inventor,artista, poeta, filósofo e compositor, ela nos remete à questões neurológicas, culturais, filosóficas, biológicas, psicológicas e matemáticas.
Atualmente uma nova ciência se destaca pela sua interdisciplinalidade e complexidade embora objetiva nas explicações de fenômenos ligados à comunicação através de signos: A semiótica ou "a ciência dos signos". Essa idéia, em alguns momentos, se mesclará com alguns conceitos sobre o Caos formando assim a base deste trabalho que proprõe uma interpenetração desses três assuntos: Semiótica, John Cage e Caos.

Há cerca de três séculos, a Semiótica começou a ser usada na medicina como um estudo para interpretar os sintomas apresentados pelos pacientes.
Na idade média, a medicina sofria repressão da igreja católica que considerava o corpo humano algo inviolável e sagrado, não podendo ser molestado em nenhuma hipótese por pessoa alguma.
Muitas ciências se desenvolveram de forma considerável ou mesmo espantosa durante a idade média, como é o caso da astronomia e física por exemplo.
Um bom diagnóstico naquela época vinha de um médico atencioso, observador e com conhecimentos semióticos para ser capaz de INTERPRETAR os SINAIS da possível doença do paciente.
A semiótica que está em uso nos dias atuais vem dos estudos do norte americano Charles Sanders Peirce (1839-1914) embora há outra corrente que vem da europa, que atualmente esta perdendo sua força, chamada Semiologia. O nome por trás desses estudos é o de Ferdinand de Saussure com seu Curso de Lingüística Geral (1916).

Segundo Winfried Nöth (1995:19), A Semiótica é a ciência dos signos e dos processos significativos (semiose) na natureza e na cultura". Abrage outras áreas do conhecimento humano como a filosofia, matemática, biologia, linguistica e artes.
Por sua vez, um signo é algo concreto ou abstrato que pode representar um objeto ou referir-se a ele, sem no entanto poder proporcionar familiaridade ou reconhecimento deste objeto desde que alguém ou alguma coisa o compreenda e o interprete.

A frase dita por John Cage na introdução deste trabalho: "Por volta do ano de 1945 eu ainda pensava que a música tinha que comunicar algo.", é o ponto de partida para relacionar os estudos semióticos e do Caos com o trabalho musical de Cage (embora ele também tenha criado trabalhos em outras áreas como literatura e artes plásticas).

Primeiramente, a questão é: Por quê ele diz "por volta de 1945"?
Foi durante a segunda metade da década de 40 que John Cage tem seus primeiros contatos com as filosofias orientais através de um músico indiano chamado Gita Sarabhai que pediu aulas sobre contraponto e música contemporânea à Cage. Ele em troca gostaria de aulas sobre música e filosofia oriental. Sarabhai emprestou um livro a Cage entitulado "The Transformation of Nature in Art" de Amanda Coomaraswamy onde ela trata a arte com uma abordagem espiritual. Uma novidade pra qualquer ocidental da década de 40.
Posteriormente, conhceu Daisetz Suzuki, filosofo japonês que apresentou o Zen Budismo ao ocidente. Cage conectou seu mundo musical de sons e silêncio ao conceito Zen. Assim conclui que a arte deveria imitar a natureza na sua maneira de operação. Esse foi o ponto de partida para uma nova forma de encarar a música e que mudou de maneira muito significativa sua forma de compor.

O silêncio passou a ter maior importância para John Cage apartir de então, tanto que em 1951 ele procura na Universidade de Harvard uma câmara anecróica, ou seja, uma câmara mecanicamente aprova de som.
Sua curiosidade o levou a fazer uma experiência: Ouvir o silêncio.
Cage tentou permanecer em silêncio dentro da câmara mas dois sons insistiam em soar, segundo ele, um agudo e outro grave. Os professores da Universidade chegaram a conclusão que os dois sons ouvidos por Cage eram respectivamente do seu sistema nervoso e de sua circulação sanguinea. Apartir desse dia Cage concluiu que o silêncio não existia. O que existe são sons não intencionais.
No ano seguinte, David Tudor senta-se em frente a um piano durante 4'33'' e não faz coisa alguma, permanece silencioso sem ao menos tocar no instrumento, porém o som existia na platéia, ela fez sua parte na música experimentando a não existência do silêncio.

Nos anos 60, com maior divulgação de seu trabalho devido as publicações de suas partituras e requisições para palestras, Cage se encontrava com pouco tempo disponível para compor. Para se ter idéia da drástica mudança em sua vida composicional, nos anos 50 ele escreveu cerca de 40 peças e nos anos 60 somente 15, sendo que algumas nem ao menos chegaram a ser escritas ou se tratavam apenas de uma bula, como 0'00''.
Cage reage a sua nova realidade e responde transformando sua própria vida em arte. Se transforma num signo auto refenciado dele mesmo em suas próprias obras, onde o representamen (o próprio Cage) representa ele mesmo (objeto) nas suas leituras e happenings. Embora o ícone se assemelha muito ao objeto (representamen) em sua aparência, ele não é o objeto, logo esse não é o termo adequado para definir a própria pessoa representando ela mesma.

0'00'' emerge em meio a nova realidade Cageana como uma releitura da sua obra 4'33''. Ele próprio se refere a ela como 4'33'' no.2. O silêncio era entendido por ele como sons não intencionais e em 0'00'' as ações são não intencionais produzindo sons também não intencionais mas de forma amplificada, atingindo assim um reminescência de sons eletroacústicos embora não tinha sido essa sua verdadeira intenção.
0'00'' significa "tempo zero". A não estrutura da obra. Quando não se tem mais estruturas somente os sons restam, deixando eles apenas "serem".
A ação dos microfones é similar a um microscópio nessa peça. O objetivo é fazer música com ações cotidianas que, para serem ouvidas, necessitam de amplificação, não apenas até se tornar audível, mas amplificar demasiadamente para se ouvir de um modo novo e causar novas sensações nos espectadores assim como temos uma percepção diferente ao ver um fio de cabelo num microscópio. As ações são simples como beber água enquanto se faz anotações sobre o livro que se está lendo e esses sons estão se referindo ao objeto que o produz. Assim era o dia a dia do Cage, na medida do possível.

Podemos fazer paralelos entre a relação triádica da semiótica de Peirce onde signo passa por três etapas, até ser definitivamente decodificado por nossa mente e a obra 0'00.
Num primeiro momento, nos deparamos com algo e percebemos sua existência. Não sabemos ainda do que se trata ao certo, mas já recebemos um primeiro estímulo. Nos demos conta que algo não usual está acontecendo, um fato novo que nos surpreendeu que até agora se mantem indeifinido perante nossa compreensão, mas com certeza, existente.
Estamos pois no primeiro processo da tríade semiótica: a Primeiridade ou seja O modo de ser de algo exatamente como ele é e desprovido de referências significativas.

Percebemos que se trata de uma performance artística, mais espeificamente de uma intervenção cênica musical aparentemente aleatória por parte de um intérprete o qual é o centro da nossa atenção.
Cabe salientar que estamos perante um caso onde o "músico" e o "ator" são a mesma pessoa, onde a figura que vemos em ação é um objeto (nesse caso o representamen) com dois significados (o interpretante semiótico de Pierce) ou seja, dois potenciais signos. Definir o papel do artista nesse contexto é tarefa que cabe à análise subjetiva do espectador. Provavelmente os mais afeiçoados com a música exergarão a figura de um intérprete em uma performance um tanto arrojada. Já os apreciadores da arte cênica irão se entreter com a performance dramática mas ao mesmo tempo espontânea do artista. Em ambos os casos já estamos fazendo relações sem ainda ter alcançado o interpretante ou o significado do que está acontecendo.
Nos encontramos na Secundidade, onde relacionamos os elementos da primeiridade com o nosso repertório de conhecimentos do mundo em que vivemos. É a fase da comparação, relação, conflito e a procura por algo.

Compreendemos que estamos num tipo de performance artística conhecida como Happening. Os elementos ou sinais que nos alcançaram na primeiridade foram comparados e processados na secundidade e agora desfrutamos de um resultado, de um sentido, ou semióticamente falando, de um interpretante. Alcançamos o ponto onde podemos compreender a obra. O caminho percorrido à compreenssão da obra não é o único embora o processo seja.
Pierce define: "Um signo, ou representamen, é algo que representa algo pra alguém, sob algum aspecto ou âmbito. Dirigi-se a alguém, isto é, cria na mente dessa pessoa um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo que ele cria, eu denomino interpretante do primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto. Ele representa aquele objeto não em todos os aspectos, mas com referência e um tipo de idéia (que eu por vezes, denominei ' fundamento do representamen. ' " (§ 2.228, Pierce).
Alguma pessoa poderia achar a peça tola ou sem razão de ser, o que é diferente de "não achar sentido nela", pois esse já é um resultado obtido na Terceiridade que pela falta de repertório cultural da pessoa, retorna um resultado nulo ou vazio a esse estímulo. Esse foi o resultado de seu interpretante semiótico.
Simplesmente essa pessoa não obteve êxito na busca do conceito, ou idéia central da obra artística. Não conseguiu relacionar os fatos artísticamente apresentados com o mundo o qual ele vive, ou mesmo sua própria vida. Não aproveitou a beleza da linguagem de John Cage.

Em 0'00'' Cage também resgata a idéia de Duchamp de Ready made. Podemos compreendê-lo como um paradoxo semiótico, pois se trata de romper com o significado original de um objeto inserindo-o em um novo contexto, dando a ele um novo significado.
Marcel Duchamp foi pioneiro nessa linguagem artística de profundo significado semiótico.
Em 1913 ele cria Roue de bicyclette que consiste numa roda de bicicleta posta de ponta cabeça sobre um banco de madeira. Mas seu Ready made mais famoso é com certeza Fountain de 1917 que se trata de um mictório bombardeado de conceitos.

Logo encontramos semelhanças que nos fazem enxergar 0'00'' como um Ready made, pois trata-se de um fato do cotidiano transformado em arte. Ao contrário dos objetos concretos de Duchamp, Cage transportou algo abstrato para compor sua obra artística. A cênico e o musical se misturam em ações simples e corriqueiras, se transformando em arte sob o prisma Cageano.

Sua obra ainda conta com outro fator importânte: O acaso.
O Acaso foi inserido nos anos 50 nas obras de Cage após seu contato com a filosofia oriental. A idéia de 4'33'' por exemplo, ilustra bem o acaso, encarando o silêncio como "sons não intencionais". Outras obras que usam o acaso de forma elaborada são Musica of changes e Apartament House 1779.
Compor peças aleatórias é aceitar as respostas dadas às suas perguntas feitas no processo de criação, e após a obra completa fica a critério do artista aceitá-la ou despedir-se dela jogando-a na lata do lixo se assim for desejado.
Outros artistas como Pollock e, novamente, Duchamp, incorporaram o acaso em suas obras.
Aqui Duchamp também foi pioneiro. Sua obra mais importante, Grand Verre de 1915-1925 é um bom exemplo.
Ela consiste numa pintura sobre uma tela de vidro onde este se encontra rachado. Claro que Duchamp não concebeu sua obra com o vidro já rachado, tal fato acontecera em 1926 durante o transporte de suas obras quando os transportadores puseram duas pinturas sobre vidros uma sobre a outra. Chegando ao final do percurso ambas se encontravam rachadas.
O resultado do acidente surpreendeu Duchamp positivamente, aceitando o resultado e até considerando as rachaduras como um aperfeiçoamento de sua obra. Não mais se imagina Grand Verre sem as rachaduras.

No caso de Jackson Pollock, o acaso encontra-se incorporado de uma forma um pouco mais controlada através da sua técnica de dripping. Pollock criava seus quadros do zero, iniciando o processo com a primeira gota de tinta derramada sobre a tela estendida no chão e assim ele ia controlando na medida do possível as demais gotas de tinta.
"O acaso é liberdade em relação às leis da lógica, porém é a condição de necessidade devido à qual se enfrenta a cada momento, na vida, situações imprevistas. A salvação não reside na razão que faz os projetos, mas na capacidade de viver com lucidez a casualidade dos acontecimentos." (Argan, Giulio Carlo, 1988:532)

O acaso nas Obras de Cage têm um caráter mais espiritual e bucólico. Essa ligação com a natureza e o acaso procede já que temos uma visão que a natureza é imprevisível e segue a aleatóriedade. Perguntas sobre como prever os desenhos que serão feitos nas asas de uma borboleta, como definir a área de uma folha, quando ela se desprenderá do seu galho ou mesmo como as moedas do i-ching se comportarão nas mão de Cage, nos faz pensar se somos capazes de explicar os padrões encontrados na natureza ou mesmo se nela existem tais padrões.
Acredita-se hoje que a natureza não seja tão aleatória como se acreditava a décadas atrás. Estamos nos referindo à Teoria do Caos. O caos está presente em nossa vida e com certeza encontramos seu similar artístico nas obras apartir de 1950 de Cage quer o compositor tendo consciência disso ou não.
A teoria do Caos lida com fenômenos que são aparentemente imprevisíveis, buscando padrões simples que regem os comportamentos complexos. O caos é uma ciência nova que se tornou viável somente apartir da década de 60 quando os computadores passaram a ter capacidades gráficas e de processamento de cálculos matemáticos necessários.
Com isso a natureza deixou, e deixa cada vez mais, de ser totalmente imprevisível. Um bom exemplo é a meteorologia que vem se desenvolvendo
com os anos se tornando cada vez mais precisa.
O nome de Charles Lorenz é de grande importância na meteorologia e também na Teoria do Caos. Em 1961 ele trabalhava num modelo computacional de previsão meteorológica que procurava alguma ordem na imprevisibilidade do tempo. Em seus estudos ele descobriu que o simples arredondamento de números nos seus cálculos (por exemplo 1,876211928 para 1,8762) resultavam mais adiante em resultados completamente diferentes dos esperados. Estava Lorenz a frente de um sistema caótico que posteriormente foi estudado com mais atenção tornando-se um elemento a mais na miscelânea de descobertas e experiências feitas por homens espalhados pelo mundo que formulam a Teoria do Caos.
Na semiótica, a meteorologia, se resume a observação e interpretação dos índices, assim como os médicos do século XVII.
Ora, sabemos que nuvens escuras no céu significam provável chuva e goteiras num telhado mal construído. Essa relação é feita pois encaramos as nuvens escuras como índices de posterior chuva. Um índice é um signo semiótico que se relaciona com o seu interpretante não por simples similaridade como os ícones, mas por uma sucessão lógica de pensamentos, experiências e significados. Quando olhamos nuvens escuras no céu não vemos diretamente a imagem da chuva, mas sim água em forma gasosa que está para se desprender e pela ação da gravidade cair sob nossas cabeças ou o que poderia ser pior, provocar uma tragédia em um penteado feminino.
Assim é o caos na natureza visto sob um ângulo semiótico.

Em Music of Changes, Cage define três tabelas cada uma com os elementos individuais de qualquer peça musical tradicional: sons e silêncio, ritmos e dinâmicas. Possuindo essas três tabelas em mãos, Cage faz uso do i-ching para sortear um elemento de cada tabela e dessa maneira a música, aos poucos, vai se formando. O intérprete tem o aval do compositor para modificar algumas partes da música que ele julgar necessárias, vencendo de forma criativa os desafios que o próprio compositor os chamou de "irracionais".
Nesse tipo de composição por aleatóriedade ou chance, é importante aceitar os resultados fornecidos pelo método que se escolhe para criar a composição musical, pois qualquer intervenção do autor tira a autenticidade do acaso e da imprevisibilidade. Mas isso não quer dizer que a peça musical não pode ser ignorada. O método para compor algo aleatório com sucesso está em fazer as perguntas certas, deixando uma área interessante onde o processo de aleatóriedade possa trabalhar. Em suma, o princípio está sob o resultado.

Podemos citar Apartament House 1776 (1976). Aqui fica evidente o que vêm a ser um processo composicional por aleatóriedade baseado num princípio interessante e deixar o acaso fazer a música.
Apartament House 1776, foi encomendada a Cage para comemorar o bicentenário da Revolução americana. O objetivo de Cage era remeter o ouvinte aos corais feitos no século XVIII nos EUA selecionando várias peças escritas na época para serem alteradas para uma sonoridade atual, sem cadências ou qualquer relação com tonalidades mas mantendo uma reminescência da melodia e do sabor da música.
Em sua primeira tentativa, Cage simplesmente tirou aleatóriamente, através do processo de chance, algumas notas das melodias originais. O resultado foi tão insatisfatório que segundo ele, não valiam nem as folhas gastas no processo de composição.
Numa segunda Tentativa, Cage inseriu o silêncio como uma nova possibilidade usando o mesmo método descrito anteriormente em sua primeira tentativa, mas ainda sem atingir o resultado esperado.
Em uma terceira tentativa, algumas notas da melodia foram prolongadas com inserção do silêncio espalhado entre ela. Assim, segundo Cage, "as cadências desapareceram, mas o sabor e a leve lembrança das peças originais estavam lá. Os sons vibravam por eles mesmos e não por causa de uma teoria".
As músicas originais são os objetos os quais serão modificados, transformando-se em algo novo. Esse por sua vez, tem como objetivo, lembrar as músicas originais. Essa nova música é o representamen das músicas originais, ela representa seu objeto original com modificações. Fisicamente, se é que nós podemos nos referir assim, a música feita por Cage é completamente distinta das músicas originais, mas ainda permanece um sentido que, de alguma forma, remete as antigas músicas americanas do século XVIII.
Mesmo sendo Apartament House 1776, uma obra aleatória, Cage modificou os métodos até chegar no resultado desejado de acordo com o seu apelo estético.


Bibliografia:


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CABANNE, Pierre. Marcel Duchamp - Engenheiro do Tempo Perdido. Tradução de António Rodrigues. Lisboa : Assírio & Alvin, 1990
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NÖTH, Winfried. Panorama Geral da Semiótica: De Platão a Pierce. São Paulo : Annablume, 1995




O Divã do pobre (ou “o divã popular”)

Felix Guattari


Texto de referência (tradução-Prof.Boccara.)


Os psicanalistas sempre foram desconfiados do cinema, eles sempre foram atraídos por outras formas de expressão. Mas o inverso não é verdade, os apelos das bases do cinema à psicanálise foram inumeráveis, começando pela proposição de M.Goldwyn a Freud: cem mil dólares para tratar de amores célebres! Esta dissimetria sem dúvida não é causada a assuntos de respeitabilidade, ela se relaciona mais fundamentalmente ao fato de que a psicanálise não pode compreender os processos inconscientes que são colocados em jogo pelo cinema. Ela tentou algumas vezes de estabelecer analogias formais entre o sonho e o filme - para René Laforgue, se trata de uma espécie de sonho coletivo, para Lebovici, de “um sonho para fazer sonhar” . Ela tentou assimilar a sintagmática fílmica aos processos primários mas ela nunca conseguiu se aproximar, e por causa daquilo que a torna específica: uma atividade de modelagem do imaginário social irredutível aos modelos familiares e edipianos, mesmo nos casos aonde ela se coloca deliberadamente a seu serviço. A psicanálise se preenche atualmente da linguística e da matemática, ela nem continua ao menos a subtrair as mesmas generalidades sobre o indivíduo e a familia, enquanto que o cinema se envolveu com o conjunto dos campos sociais e históricos.
Alguma coisa de importante ocorre por outro lado, ele(o cinema) é o lugar de investidas de cargas libidinais fantásticas, por exemplo daquelas que se formam ao redor de uma espécie de complexos que constituem o faroeste racista, o nazismo e a resistência ao american way of life, etc. E é preciso admitir que Sófocles dentro de tudo isto, não tem nada a dizer!

O Cinema tornou-se uma gigantesca máquina de modelar a libido social, então que a psicanálise nada foi além de ser um pequeno artesanato, reservado a elites selecionadas.

Nós vamos ao cinema para suspender durante um certo tempo os modos de comunicação habitual. O conjunto dos elementos constitutivos desta situação concorrem a esta suspensão. Qualquer que seja o caráter alienante do conteúdo de um filme ou de sua forma de expressão o que ele objetiva fundamentalmente é a produção de um certo tipo de comportamento que por falta de melhor termo eu chamaria de: performace cinematográfica. É porque o cinema é capaz de mobilizar a libido a partir desse tipo de performace e que esta pode servir ao que Mikel Dufrenne chamou de "a casa do inconsciente".

Considerado sobre o ângulo da repressão inconsciente, a performance cinematográfica e a performace psicanalitica (o ato analítico) merecem e podem ser comparadas.
A psicanálise da "Belle époque", há muito tempo, fez crer que ela se propunha liberar as pulsões dando-lhes a palavra; de fato ela jamais aceitou desfiar o tecido do discurso dominante que na medida aonde ela poderia fazê-lo, melhor que jamais o tivesse feito pela repressão ordinária, dominando-os e disciplinando-os, adaptando-as às normas de um certo tipo de sociedade.
No final das contas, o discurso debitado nas sessões de análise não é mais libertador que aquele que se manifesta nas sessões de cinema. A pretensa liberdade de associação de idéias não é mais do que um procedimento que mascara uma programação, uma modelização secreta dos enunciados. Tanto na cena analítica quanto na tela, se entende que nenhuma produção semiótica do desejo não terá presença real. O pequeno cinema da análise e a psicanálise de massa do cinema definem um e outro, as passagens ao ato, os acting out.

Os psicanalistas e igualmente numa certa medida, os cineastas gostariam de serem considerados como criaturas fora do tempo e do espaço, como puros criadores, neutros, apolÍticos, irresponsáveis. E em algum sentido, eles podem ter razão pois de fato eles não tem realmente consciência sobre os processos de modelagem do qual eles são agentes. A matriz de leitura psicanalítica pertence, hoje em dia, tanto ao analista quanto ao analisado ela se cola na pele de todos e de cada um - "Veja, você fez um lapso (ato falho)" -, ela se integra às estratégias intersubjetivas e também aos códigos perceptivos: proferimos interpretações simbólicas como ameaças, nós "vemos falos, retorno ao seio maternal, etc.
A interpretação agora, que vai por conta de si mesma, da melhor maneira possível, de maneira assegurada, por um psicanalista atento, é ainda o silêncio. Um silêncio sistemático, batizado de escuta analítica: "sobre a tela do meu silêncio, teus enunciados tomarão o seu sentido" a cada um, seu cinema.
Em verdade, o vazio da escuta responde aqui a um desejo vazio de todo o conteúdo, a um desejo de nada, a uma impotência radical e não é de se estranhar, nestas condições que o complexo de castração, tenha se tornado o objetivo último da cura e mesmo sua referência, constante a pontuação de cada uma de suas seqüências, o cursor que devolve perpetuamente o desejo ao seu grau zero.
O psicanalista, assim como o cineasta, é conduzido pelo sua subjetividade. É o que se espera de um e de outro, é a confecção de um certo tipo de droga, que por ser tecnologicamente mais sofisticado que os barbitúricos tradicionais, não por menos de sua função de transformar o modo de subjetivação daquele que a ele se dedica: Captamos a energia do desejo para retorná-la contra ela mesma, pra anestesiar, para cortá-la do mundo exterior de modo a que ela cesse de ameaçar a organização e os valores do sistema social dominante. Mas o que nós queremos mostrar é que estas drogas não são da mesma natureza; globalmente elas procuram os mesmos objetivos, mas a micropolítica do desejo que elas colocam em ação e os agenciamentos semióticos sob os quais elas se apóiam, são totalmente diferentes.

Pode ser talvez que estes críticos não procurem além que um certo tipo de psicanálise e que não concerne verdadeiramente à corrente estruturalista, na medida aonde ele não considera mais que a interpretação deve depender de paradigmas de conteúdo, como era o caso com a teoria clássica dos complexos semelhantes - mas de um jogo de universos significantes, independentemente das significações que eles podem engendrar? Mas poderia crer, verdadeiramente a psicanálise estruturalista quando ela pretende a sua renúncia a modelar e a transcodificar as produções do desejo?

O inconsciente dos freudianos ortodoxos foi organizado em complexos cristalizantes da libido, principalmente uma série de elementos heterogêneos: biológicos, familiares, sociais, éticos, etc. O complexo de Édipo, por exemplo, que colocaram de lado seus componentes traumáticos, reais ou imaginários, foram fundados sobre a divisão dos sexos e aqueles das faixas etárias. Considerávamos que se tratava de bases objetivas por relação àquelas em que a libido estava prestes a se exprimir e se finalizar. Mesmo hoje uma interrogação política sobre estas evidências poderá parecer a alguns como fora de propósito.
E, portanto todo mundo conhece as numerosas situações onde a libido recusa estas evidências, onde ela contorna a divisão dos sexos, onde ela ignora as interdições relacionadas às diferenças de idades, onde ela confunde, como prazer, as pessoas , onde ela compõe, a sua ordem as constelações de tratos de visibilidade ̀as quais e mesmo onde ela tem a tendëncia a passar ao lado de oposições exclusivas entre o sujeito e o objeto e entre eu e o outro.Devemos considerar que não se trata lá , por definição , de situações perversas marginais ou patológicas,que pedem para serem interpretadas e adaptada sem referëncia
às boas “normas`` .
É verdade que, na origem, o estruturalismo Lacaniano se constituiu contra um realismo “naif “, em particular sobre questões que rodeiam o narcisismo e a psicose, e pretendia romper radicalmente com uma prática da cura inteiramente centrada sobre a remodelagem do “eu “. Mas desnaturalizando o inconsciente, liberando seus objetos de uma psicogénese muito concentrada, estruturando-os “como uma linguagem”, ele não o ajudou , portanto, a romper suas amarras personalistas e se abrir ao campo social, ao fluxo cósmico e semiótico de toda espécie. Cessamos de remeter as produções de desejo a uma bateria de complexos totalizadores mas se pretende sempre interpretar cada uma de suas conexões de uma única e mesma lógica do significante onde as matrizes seriam o “falo “ e a “castração”. Renunciamos ao mecanismo reducionista das interpretações de conteúdo (“o gurda-chuva , quer dizer....”)e de estados de desenvolvimento(os famosos “retornos” ao estado anal, etc.)Não se trata mais da questão do pai e da mãe: se fala agora do nome do pai, do “falo” do grande “Outro” mas continuamos distante da micropolítica do desejo sobre o qual se fundamenta a diferenciação social dos sexos, ou a alienação da criança em guetos do familiar. As lutas do desejo não teriam sido circunscritas ao único terreno do sigificante, mesmo no caso da “pura” neurose significante, como a neurose obsessiva, elas se derramam sempre sobre os terrenos somáticos, sociais, econômicos, etc. E no mínimo considerando que o significante se encontra em tudo, sem se importar no quê, é preciso admitir que restringimos o papel do inconsciente ao considerá-lo apenas sob o ângulo das cadeias significantes que ele coloca em jogo. ”O inconsciente é estruturado como uma linguagem” Certo! Mas por quem? Pela família, pela escola, pela caserna, pela usina, pelo cinema, e no caso específico, pela psiquiatria e pela psicanálise. Não somente ele tomou partido da sua alienação às cadeias significantes mas solicita e re-solicita siginificação! O que sobra, por exemplo, a este nível do significante, a alienação milenar das mulheres pelos homens? Pela fala dos linguistas, os traços inocentes como a oposição do masculino e do feminino, e dos psicanalistas , das miragens que jogam ao redor da presença –ausência do “falo”. A cada tipo de perfomance linguística, a cada cotação “da graduação gramatical “de um enunciado, correspondente a uma certa situação de poder. A estrutura do significante não é completamente redutível a uma pura lógica matemática, ela sempre é parte relacionada às diversas máquinas sociais repressivas. Uma teoria de natureza universal , assim como em linguística, em economia em antropologia que em psicanálise, não só poderá fazer obstáculo a uma exploração real do inconsciente, isto é constelações semióticas de toda natureza, de relações de forças e de contraposições de toda natureza que constituem os agenciamentos do desejo. A psicanálise estruturalista não poderá
pois certamente nos ensinar mais coisas sobre os mecanismos inconscientes que se colocam em jogo pelo cinema ao nível de sua organização sintagmática, que não pode fazê-lo a psicanálise ortodoxa, ao nível dos conteúdos semânticos. Mas será que o cinema, ele mesmo, poderia nos ajudar a compreender a pragmática das investigações inconscientes no campo social?

Com efeito o inconsciente no cinema não se manifesta da mesma forma que no divã: ele escapa parcialmente à ditadura do significante, ele não é redutível a um fato de linguagem, ele não respeita mais, como continuava de o fazer a transferência psicanalítica, a dicotomia clássica da comunicação entre o locutor e o ouvinte. Seria no entanto oportuno de se fazer a questão: saber se esta dicotomia deva ser colocada entre parênteses ou se não há lugar de reexaminar, nesta oportunidade, o conjunto das relações entre o discurso e a comunicação. Pode ser, apesar de tudo, que a comunicação entre um locutor e um auditor discerníveis, se trata apenas de um caso particular, um caso limite, do exercício do discurso. Pode ser que os efeitos de subjetivação e de desindividuação do enunciado que são produzidos pelo cinema ou em situações similares ( drogas, sonhos, paixões, criações, delírios, etc.)não representam casos excepcionais por relação ao caso geral que é definido pela comunicação intersubjetiva “normal” e da consciência “racional” da relação sujeito-objeto .É esta a idéia de um sujeito transcendental do enunciado que deveria ser recolocado em questão e, correlativamente a separação entre o discurso e a língua ou a dependência de diversos modos de performance semióticas a uma pretensa competência semiológica universal. O sujeito consciente de si mesmo “mestre dele mesmo como do universo” não deveria que ser considerado mais do que um caso particular-aquele de uma espécie de loucura normal. A ilusão é de crer que existe um sujeito, um sujeito único e autônomo correspondente a um indivíduo, então que é um jogo, é sempre uma multiplicidade de modos de subjetivação e de semiotização. Claro, é que o cinema não escapa, portanto, nem de longe, à contaminação pela significações do poder! Mas as coisas não se passam com ele, da mesma forma, que a psicanálise ou com as tácnicas artísticasbem policiadas..
O inconsciente, no cinema, se manifesta a partir de agenciamentos semióticos, irredutíveis a uma concatenação sintagmática, que o disciplinaria mecânicamente, que o estruturaria segundo planos rigorosamente formalizados de expressão e conteúdo. Ele é feito de encadeamentos semióticos a-significantes, de intensidade de movimento, de multiplicidade que tendem fundamentalmente a escapar à quadratura significante, e que são modelados somente em um segundo momento, pela sintagmática fílmica que lhe fixa generos, que cristaliza sobre eles personagens e esteriótipos comportamentais de modo a torná-los homogêneos, com campos semânticos dominantes. Este excesso da expressão em relação ao conteúdo, define com certeza o limite entre uma comparação possível, entre a repressão do inconsciente no cinema e em psicanálise. Um e outro, conduzem à mesma política , mas os processos e os meios são diferentes. A clientela do psicanalista, se presta, ela mesma à tarefa de de redução significante. Enquanto que no cinema, este deverá, a sua vez, se manter em permanente escuta das mutações do imaginário social e de se colocar diante da proliferação inconsciente que ameaça explodir.
A linguagem no cinema não funciona da mesma forma que na psicanálise ; não se torna lei, trata-se apenas de um meio entre outros. Um instrumento no centro de uma orquestração semiótica complexa. Os componentes semióticos do filme escorregam uns com relação aos outros sem jamais se fixar e se estabelecerem por exemplo em uma sintaxe profunda de conteúdos latentes e de sistemas de transformação que desembocam, na superfície, em conteúdos manifestos. Significações relacionais, emotivas, sexuais-preferiria dizer de intensidades—e são constantemente veiculadas por “traços de matéria expressiva”heterogeneas .Os códigos se entrelaçam sem que algum deles se destaque em detrimento do outro , sem constituir substância “significante”; passamos , em um vai e vem contínuo, de códigos perceptivos a códigos denotativos, musicais, conotativos, retóricos, tecnológicos , econômicos , Sociológicos, etc.

Umberto Eco, já tinha reparado que o cinema não se duplica em um sistema de dupla articulação, e isto o tentara a conduzi-lo a encontrar uma terceira. Mas sem dúvida é preferível seguir Christian Metz que considera que ele escapa a todo sistema de dupla articulação, eu acrescentaria de minha parte, a todo sistema elementar de encadeamento significativo. Os significados, no cinema não são correlacionados diretamente em uma máquina que cruza os eixos sintagmáticos e eixos paradigmáticos; eles aparecem sempre em um outro momento, de correlações externas que a modelam. Se o filme mudo conseguiu, por exemplo, exprimir de forma muito mais contundente e autêntica do que o filme falado as intensidades do desejo em suas relações com o campo social, não porque fosse menos rico no plano expressivo, mas porque o cenário significante não tinha ainda se apossado da imagem e que nestas condições, o capitalismo não havia ainda percebido tudo aquilo que poderia aproveitar. As invenções sucessivas do filme falado, da cor, da televisão , etc. na medida em que enriqueciam as possibilidade de expressão do desejo, conduziram o poder a reforçar seu controle sobre o cinema e mesmo se valer dele como um instrumento privilegiado. É interessante sob este ponto de vista, de constatar a que ponto a televisão não somente não conseguiu absorver o cinema, mas se viu obrigada a se submeter à fórmula do filme na potência deste no momento em que jamais foi tão forte.
O cinema comercial não é simplesmente uma droga boa de vender. Sua ação inconsciente é profunda; pode ser mais eficiente do que qualquer outro meio de expressão. Por outro lado a psicanálise não a alcança !O efeito de subjetivação da análise não consegue abolir, como o faz parcialmente o cinema, a individualização personalista do enunciado. Na psicanálise, fala-se o discurso da análise; dizemos a alguém o que cremos ser o que ele amaria ouvir. No cinema não temos mais direito à palavra; ele fala por você em seu lugar; temos o discurso que a indústria cinematográfica imagina que você amaria ouvir; uma máquina te trata como uma máquina, e o essencial não é o que ela diz, mas esta espécie de vertigem de anulação que se constitui o fato de você ser uma máquina também. Como as pessoas estão dissuadidas e que as coisas se passam sem testemunhas, não temos vergonha de nos abandonar também.
O importante, aqui, ainda uma vez, não é mais a semântica ou a sintaxe do filme, mas os componentes pragmáticos da performance cinematográfica. Pagamos nosso lugar no divã para esvanecer através da presença silenciosa do outro-se possível alguém que será um padrão nitidamente superior ao seu-,
Então pagamos nosso lugar no cinema para esvanecer através de qualquer um e de se deixar arrastar em qualquer tipo de aventura, sem compromissos, sem amanhã. Em princípio! Porque de fato a modelagem que resulta desta vertigem a bom termo não acontece sem deixar traços:o inconsciente se encontra povoado de índios, de cow-boys, de tiras, de bandidos, de Belmondos e Marlyn Monroes...É como o tabaco ou a cocaína, não percebemos seus efeitos- e quando o percebemos- estamos completamente dependentes. E esta droga é hoje administrada massivamente às crianças, antes mesmo de aprenderem a ler.
Mas a vantagem da cura psicanalítica, não é precisamente de evitar tal promiscuidade? A interpretação e a transferencia não tem por função de separar e selecionar o bom inconsciente do malvado? Não são guiados nem trabalhados através de um fio? Infelizmente esse fio pode ser ainda mais alienante do que qualquer psicanálise selvagem! Na saída do filme somos obrigados de acordar e de cessar mais ou menos seu próprio cinema – toda a realidade social é empregada nisto -, mas a sessão de psicanálise tornou-se interminável, ela transborda sobre todo o resto da vida. Geralmente, a performance cinematográfica não é vivida como outra coisa que uma simples distração, enquanto que a cura analítica – e é verdade, mesmo para os neuróticos – tornou-se como uma espécie de promoção social: ela é acompanhada de um sentimento de que estamos nos tornando qualquer coisa como um especialista do inconsciente, um especialista tão envenenador para o ambiente que os outros especialistas de não importa o que, por exemplo aqueles do cinema! A alienação para a psicanálise se refere àquilo que o modo particular de subjetivação que ela produz se organiza ao redor de um sujeito para o outro, um sujeito personalizado super adaptado, super guiado às práticas significantes do sistema. A projeção cinematográfica, ao contrário, desterritorializa as coordenadas perceptivas. Sem o suporte da presença de um outro, a subjetivação tende a se tornar um tipo de alucinação, ela não se concentra mais sobre um sujeito, ela explode em uma multiplicidade de polos, mesmo quando nós nos fixamos sobre um único personagem. Não é mais uma questão, propriamente falando do sujeito do enunciado, pois o que é emitido por estes polos, não é mais somente um discurso, mas de intensidade de toda espécie, de constelações de recursos de visibilidade, de cristalização de afetos. Mas as papilas semióticas do inconsciente, não tiveram o tempo de serem estimuladas que de imediato o filme se encarrega a condicioná-las à homogeneização semiológica do sistema (exemplo “o objeto de amor ,repitam comigo, é sempre equivalente de uma propriedade privada” ) o inconsciente, depois de ter sido colocado nú, tornou-se como um território ocupado. Mesmo os antigos Deuses da família são perturbados, eliminados ou assimilados. É que suas existências estavam relacionadas a um certo tipo de territorialização da pessoa, e a uma certa semiologia da significação. As conjunções semióticas do cinema passam através das pessoas e a linguagem da comunicação “normal”, aquela que nós temos em família, na escola ou no trabalho; ela desterritorializa todas as representações. Mesmo quando ela parece dar a palavra a um personagem “normal”, a um homem, a uma mulher ou a uma criança, trata-se sempre de uma reconstituição, de uma marionete, de um modelo – zumbi, de um “esvanecimento” que está prestes a se colar sobre o inconsciente para tomar-lhe o controle. Não levamos para o cinema, como em psicanálise, nossas lembranças da infância, o papai e a mamãe; é mais: quando nós os reencontramos em seguida, não podemos impedir de colar sobre eles as produções do inconsciente cinematográfico.
O pequeno teatro edipiano da família não resistem às injeções destas capsulas de narrativas que constitui o filme. Todo mundo fez a experiência daquilo que o trabalho do filme pode perseguir diretamente naquele do sonho – e de minha parte, eu notei que a interação era de tal ordem mais forte, que o filme me pareceu não tão bom. Isto não quer dizer que o cinema não é ele mesmo de natureza familiar, edipiano e reacionário; que não trabalha na mesma direção fundamental que a psicanálise; mas não é da mesma maneira; ele não se contenta de rebater as produções do desejo sobre as cadeias significantes; ele conduz uma psicanálise de massa, ele não adapta as pessoas aos modelos desgastados, arcaicos do freudismo, mas sim àqueles que são implicados pela produção capitalista (ou socialista burocrática). E isto, vamos repetir, mesmo quando ele reconstitui os modelos de um bom e velho tempo da família tradicional. Se os meios “analíticos” do cinema são mais ricos, mais perigosos, pois que mais fascinantes, que aqueles da psicanálise, imaginamos em contrapartida, que eles poderiam também se abrirem a outras práticas. Um cinema de combate pode se constituir, então, mesmo vendo de modo pessimista no estado atual das coisas, a possibilidade de uma psicanálise revolucionária. Paradoxalmente, o inconsciente psicanalítico ou o inconsciente literário – já que eles derivam um do outro – é sempre um inconsciente de segunda mão. O discurso da análise se constitui ao redor de mitos analíticos: Os mitos individuais são enquadrados nestes mitos de referência. Os mitos do cinema não dispõe desse sistema de meta/mitos, e a gama de meios semióticos que eles colocam em jogo em conexão direta com os processos de semiotização do espectador. Em uma palavra: a linguagem do cinema e das mídias audiovisuais estão vivas, enquanto que aquela da psicanálise não fala mais, depois de algum tempo é uma língua morta. Podemos esperar do cinema o melhor e o pior, enquanto que não podemos esperar grande coisa da psicanálise! Nas piores condições comerciais, os bons filmes podem ainda serem produzidos, filmes que modificam os agenciamentos do desejo, que abordam estereótipos, que se abram ao futuro já que, faz um bom tempo, não temos mais boas sessões de psicanálise, de boas descobertas e de bons livros de psicanálise.

Obs: Não se incluíram nesta tradução as notas de rodapé por irem além das necessidades práticas do texto para uso em aula.
Original em francês: extraído da Revista Communications No.23 ano 1975.
Psycanalyse e Cinéma. Editora SEUIL. Paris. págs.96 a 103






Incursões orientadas em uma região submersa: encontrando a chave para o Inconsciente através da Arte.

Ernesto Giovanni Boccara

A gestação de uma obra artística, no meu entender, se faz ao longo de muitos anos de experiências existenciais, principalmente sensoriais e subjetivas, em que não se consegue distinguir um ponto de origem ou algum terreno sólido em que a razão analítico e prática possa se apoiar para, com o uso das palavras, construir um nexo de ordem discursiva ou narrativa legível e significante. Pode-se falar em vestígios, percursos ao longo de regiões obscuras, enevoadas ou de imersões em pântanos lamacentos ou de quedas em abismos profundos.

É como em um sonho, em que o sonhador, após acordar, pode relatar através de descrições ou narrativas detalhadas o conteúdo essencial deste. No entanto o fundamental escapa ou fica uma sensação indescritível que permanece incomunicável aos outros que no entanto nos atinge profundamente e nos transforma, não pela consciência mas através de um processo puramente emocional como uma dor ou um prazer que não pode ser compartilhado mas que cala fundo, que atinge a alma.

Falar da própria obra incomoda a muitos artistas.Principalmente quando solicitados, em especial aqueles que não tem o domínio da palavra ou são muito introvertidos ou acham que não podem fazê-lo pois não sabem de fato dizer o que aconteceu com ela e com eles. Às vezes é como um súbito acidente. Aconteceu e ninguém sabe como.Não há testemunhas e nada se sabe de como tudo começou.

A criação artística tem a força de uma abdução humana por seres extraterrestres, em que somos tomados, seqüestrados repentinamente, de olhos vendados ou anestesiados e acordamos para um fato.Este após vivenciado é apagado, restando apenas vestígios, cicatrizes, queimaduras no plano material e uma vaga e enevoada lembrança que se esvai a cada minuto que passa. A pergunta que fica é como tudo isto aconteceu? Penso que assim como os contos de fada ao terminarem suas narrativas apresentam a moral da história, os sonhos dos quais decorre uma experiência visionária e a fruição da obra de arte quando analisada, pela consciência, trazem uma revelação.

É muito comum na história da arte recente , desde o Renascimento, se sobrepor à obra, a vida do artista-autor, na medida em que muitos se referem à obra pelo nome do artista. Não considero um equívoco.Para o artista sua vida é sua obra e só encontra sentido existencial e referencial para conduzir sua vida terrestre nela e só nela, agarrando-se nela como bóia no meio do naufrágio.

Aqui se considera a motivação autentica que leva um ser humano a se esquecer como persona social e se realizar construtivamente, como ser, a partir de seu fazer artístico, não se importando com o reconhecimento e até muitas vezes sucumbindo por não suportar a adaptação a um existir fora de sua obra.

Talvez eu esteja me referindo não ao que se convencionou chamar de artista ou obra artística de modo instituído, normatizado, codificado ou rotulado. Falo de um estado alterado de percepção e consciência, de um ir além do humano, um estado de transcendência: atravessar pela corda atada sob o abismo...e ainda restar o perigo de enlouquecer ou de se perder em um labirinto, sem o fio de Ariadne.E ter uma única
saída:o suicídio.
Pode parecer dramático mas o sentido profundo daquilo que se convencionou chamar de Arte é uma perigosa e arriscada aventura espiritual. Esta teve sua origem a partir do sentimento de desespero, de em não encontrando respostas, diante do exercício da razão recém adquirida, o nosso ancestral mais antigo, nos primórdios da humanidade se deparou com um universo infinito e misterioso, cuja extensão se manifestou como incognoscível, para além de sua manifestação epidérmica e aparente. O ser humano é um eterno órfão, obcecado e tomado pela nostalgia da origem, querendo encontrar ao longo de sua extensa e antiga genealogia o foco original de onde tudo emana e promana: a paternidade perdida.

Vejo a Arte como essencialmente transcendente. Ou seja, ela é tudo aquilo que se manifesta no plano material, sensorial e fenomênico, apontando vertical e ascencionalmente, para um devir fora do corpo, fora da “Fisis”, para o céu e além do céu.
Pode parecer auto mistificação: descrever a grandeza incomensurável e inatingível de um suposto trono de ouro, coberto de diamantes e depois sentar-se nele, se ungindo do poder real e do absoluto. No entanto, se trata de uma convicção, conferida pela autenticidade de experiências existenciais irreversíveis que se instalam na alma do artista, não sem dor, não sem prazer, não sem temor mas sim com a magia do encantamento, amorosa e reveladora do vislumbre do númeno.

É possível confirmar isto.Mas é preciso percorrer a história pessoal de vários artistas e de suas obras em busca de um fragmento, um indício do que poderia ser, em suas produções artísticas, o acender de uma faísca visionária detonadora, escavando o acesso a imagens que não representam mais a realidade externa mas uma irrealidade de natureza subjetiva. Sob o ponto de vista da história da arte, a referência visual destas reflexões se concentrará na obras visuais do fantástico e lúdico universo de Hieronymus Bosch(1450), o movimento Simbolista do século XIX, o Surrealismo e o Realismo Mágico ou Fantástico do século XX.A temática deste último, as situações criadas, a construção do contexto das imagens, sugerem o irreal, o onírico,os contos de fadas e a transcendência metafísica.

O Realismo Mágico ou Fantástico tem um caráter essencialmente intrigante, associado ao encantamento, à contemplação e à fascinação. É muito positivo, otimista, estimulante. Pode ser ingênuo e ao mesmo tempo misterioso. Pode ser lírico e alegórico. Tem muita luz e cor e pode sugerir até musicalidade. Há uma teatralidade onde o espetáculo é a existência humana projetados em um espaço atemporal. Estranhos e ao mesmo tempo conhecidos personagens aparecem dramatizando situações curiosas e intrigantes são fadas , elementais (seres da natureza), cavaleiros medievais, reis, rainhas, pajens, gurus, monges, seres, que se metamorfoseiam em plantas, flores e animais, duendes, seres mitológicos, bailarinos vários, famílias fantásticas. Há um clima de oriente convivendo com uma ambientação fantástica e mágica. Há uma dramatização operística e epopéica, convivendo com uma ambientação fantástica e mágica.


Nestas obras toda a movimentação, existencial e vital, é para dentro. A riqueza vem da paisagem psicoscenográfica que se representa.Ela é dinâmica e se altera de acordo com os estados de espírito. Ou seja uma típica manifestação da natureza da experiência visionária em que a instabilidade da imagem é total e efêmera, não resiste a uma alteração de humor. Onde se pode passar de uma imagem a outra sem descontinuidades. Isto permite o acesso a passagens estreitas e sombrias do percurso para o devir da luminosidade do imaginário.

Mesmo quando o artista parte de uma referência real, os personagens criados, como na literatura e na dramaturgia, estes se engrandecem de projeções do próprio artista, adensando a substância suficiente para a elaboração de complexas tessituras da psiquê no mundo material.O que se segue é o mergulho em profundidade no inconsciente coletivo e dele se extraíndo os arquétipos estruturadores que definem uma linguagem própria.E assim, é possível representar os resíduos ricos e férteis da experiência visionária que abastecem de energia potencial o trabalho de criação.
O que se manifesta é uma série de seres sem tempo histórico, sem um lugar reconhecível geograficamente mas sim lugares anímicos feitos de uma substância luminosa, de uma transparência própria dos vitrais das catedrais, construindo um universo aquoso, úmido com muita clorofila alimentado pela energia solar e essencialmente vibratório e ascenscional. Esta luz banha suavemente a totalidade de qualquer manifestação que se manifeste através de uma forma ou atravessa tudo que se apresentar aos olhos dando-lhes a vibração cromática de sua luz própria.O limite entre o processo criativo visionário e um estado de insanidade ou de torvelinho mental convencionalmente chamado de loucura, é muito sutil. Ver algo com os olhos voltados para dentro é próprio de situações conhecidas como o surto psicótico, a embriagues, a alucinação provocada por substâncias psicoativas, a meditação, o sonho, o jejum prolongado, a insônia prolongada, um medo desconhecido, a respiração alotrópica, as práticas corporais sistemáticas, as febres altas, as feridas infeccionadas, uma profunda crise existencial seguida de sucessivas depressões, o efeito colateral de certos remédios, a fértil imaginação infantil, a auto flagelação e a imposição de dores insuportáveis em rituais intencionais de sofrimento do corpo ou de iniciação, a iminência da morte, a iluminação dos santos e gurus, a paixão avassaladora, as alucinações coletivas de rituais religiosos, um violento impacto emocional, devaneios oníricos, o orgasmo sexual e finalmente o processo criativo em arte, que pode sintetizar todos estes estados através das variadas linguagens expressivas.

Considero o conjunto destes estados pré-visionários, como alteradores da percepção e da consciência quando referenciados a partir de um padrão médio de percepção, controlado pela razão prática sintonizada com a lógica do status quo dominante. Estes são os fomentadores da experiência visionária, é uma necessidade de transcendência inerente à condição humana, não importando em que situação se faça necessária.

A crise existencial própria de processos de maturação psíquica ou de saltos criativos para superação de situações adversas, favorece ou estimula certas regiões do cérebro para em defesa da sobrevivência animal do corpo provocar imagens positivas de restauração de uma força vital.Trata-se do vislumbre amoroso que muitas vezes os moribundos que padecem de dores insuportáveis são beneficiados para amenizar o sofrimento. Situações de eminente perigo e ameaça de vida conduzem a estados visionários extáticos.

Aí se percebe a linha do horizonte de um devir visionário que progressivamente toma conta de formas expressivas em Arte. Ele aponta, como digna ser para um viajante, os territórios de uma geografia e seu relevo, sem substância concreta mas feita de uma sutil essência espiritual.

A metáfora do lago congelado, facilita o entendimento e pode explicar melhor esta passagem ou seja o comportamento coletivo de milhões de seres humanos na terra consolidam uma ordem física, que retorna aos indivíduos como imposição padronizada, para a massificação, dos comportamentos e o controle social. Os lagos congelados dos invernos da região norte do planeta não se congelam com espessuras iguais ao longo de suas extensões mas sim com diferenças significativas ou seja há camadas finas, sensíveis e destas podem brotar fendas e a água que costuma estar abaixo em outra temperatura mais alta, pode sair e ser vista ou mesmo explodir em jatos de água fervente. A experiência visionária revela as regiões submersas destes lagos e pode descongelá-los de forma criativa.

O inconsciente coletivo é também associado ao mar. Os antigos alquimistas se referiam a ele com a expressão Mare Nostrum. Para os feiticeiros e profetas (xamãs) dos esquimós e de outras tribos árticas o inconsciente é o País dos espíritos. Uma outra metáfora para o inconsciente coletivo, ainda como fundo, do mar mas não apenas a região alcançável pelos homens através de tecnologias apropriadas de mergulho mas sim aquelas regiões abissais onde a pressão atmosférica sobre a coluna de água a tal profundidade não permitiria a sobrevivência de um corpo humano. Nestas regiões se acumulariam potencialmente a memória ancestral acumulada de todas as experiências ou vivências de todos os seres vivos que de alguma forma, por qualquer meio físico incorporado, retiveram-nas e guardaram-nas. Estas podem ser evocadas naqueles estados de percepção e consciência alterados.

Esta viagem ou mergulho seria realizada neste território psíquico inicialmente acessado pelo inconsciente pessoal do artista mas que deságua no inconsciente coletivo, onde inúmeras aventuras seriam potencialmente realizáveis. Este suposto território geográfico de existência infra-real, conforma e substancializa o inconsciente coletivo.

O homem e seu comportamento existencial, bem como a natureza de sua natureza, estão circunscritos por duas histórias: uma delas, em que se recua às origens do universo físico que conhecemos,uma espécie de história cósmica celeste e cujos fatos não tem representação, não tem registro na memória social humana articulada pelo consciente. Trata-se de uma memória armazenada em todos os seres vivos pensantes e não pensantes. Uma memória cujo acesso se faz por caminhos não racionais nem convencionais. A outra história é aquela que conhecemos, a nossa história social, representada, registrada pela razão prática.

Esta memória ancestral está incorporada na materialidade do mundo e em todos os seres vivos desde uma bactéria até o homem, passando por todos os três reinos mineral, vegetal e e animal. É como um imenso organismo rizomático vivo e pulsante, evocando momentos preciosos de um passado distante. Este ritual arcaico de evocação revigora o mito do eterno retorno ou seja não se trata de descobrir o novo, porém de recordar aquilo que foi esquecido, a função do inconsciente é introduzir-se no universo da consciência, clareando regiões obscuras do nosso ser e que determinam o nosso comportamento instintivo e impulsivo.
Poeticamente podemos divagar sobre os arquétipos e os mitos, como de origem celeste ou seja transcendentes, além do ser humano, que se referem ao grande, arcaico e primordial mito cristão da queda dos anjos no mundo físico da Terra. A queda das hostes celestes. A Arte então teria a função de ritual, de evocação dos anjos em seu exílio terrestre recordando com saudades da vida na pátria celeste. O ser humano seria um exilado que sempre recorda e quer voltar para casa ou seja acometido de uma melancolia de origem. Os mitos são metáforas da potencialidade espiritual do ser humano.

Segundo Mircea Eliade o mito designa uma história verdadeira. O contar e recontar desta história revive a experiência da essência do mito. Extraindo-se do mito as metáforas fantasiosas, nos defrontamos com a natureza dos processos psíquicos humanos frente às circunstâncias da existência. Isto significa que os grandes mitos deslocados do seu contexto arcaico de origem e inscritos no contexto de hoje, têm a capacidade de atualizar de forma renovada os processos subjetivos inerentes e constantes da natureza humana. É possível transcender as diferenças de espaço e de tempo na tradução de temas universais com os quais interagimos por que são, fundamentalmente temas simbólicos.

Os mitos descrevem as irrupções do sagrado no mundo, ou seja operacionalizam o espírito humano na vontade transgressora de superar as limitações da matéria e do tempo. Aí surge o gesto criador que sincroniza o gesto transformador do homem ao gesto primordial da criação divina. Através do estudo sistemático dos mitos e imagens simbólicas que lhe sobreviveram, estamos redescobrindo a história antiga do homem. Os mitos assim têm assim função estruturadora no processo civilizatório se desmistificarmos suas aparências fabulosas e os olharmos como realidade viva à qual se acessa constantemente, em busca da codificação da mente original base da memória ancestral. Procura assim o artista cavar mais fundo ir além da superfície das soluções formais consagradas que habitam sua mente.

Estas são apenas fortuitas referências iniciais como ponto de partida para a evocação ritualizada, como gesto que se repete em sintonia com gestos de uma imaginária confraria dos artistas, que evocaram também com seu trabalho expressivo os mesmos mitos

A porta perceptiva que se abre para o inconsciente coletivo facilita a passagem rápida de variados sentimentos, livres associações e suas imagens conseqüentes, que brotam após algumas persistências ou insistências de permanência, até a obsessão.Estas vão dando lugar a deformações em que o que interessa é expressar os sentimentos através de determinados movimentos que alongam, comprimem as figuras, texturizam a pele através de dobras exageradamente detalhadas. Este momento confirma como o imaginário criativo flui.

Então o que se passa no plano subjetivo, é a manifestação de imagens que persistem em se manifestar emocionalmente, e que vem do inconsciente e obcecam, exigindo exteriorização. É uma invasão progressiva na mente de imagens e associações imagéticas, provenientes do inconsciente pessoal mas formadas a partir do inconsciente coletivo. São pulsões expressivas que, de forma irregular porém consistente adquirem figurações estranhas, fundem-se muitas vezes com organismos vegetais e animais.
Acredito que se trata de um grande e infinito mosaico ou ainda um quebra cabeça cósmico. Em que cada pedaço ou parte ou fragmento componha um todo não perceptível de uma só vez.Este pode ser espacial ou seja os fragmentos se compõem em um espaço poli dimensional ou melhor holográfico, cinético e mutante.

Há uma energia sexual no fazer da Arte. Esta sempre se manifesta e é visível na obra.O corpo como um todo é que se expressa , ele é o gerador das formas.Ele quer formas.E as imagens que se formam no sistema nervoso central através de ritmos regulares das sinapses dos neurônios, são elaboradas pelo corpo. A arte significa para o artista resolver enigmas pessoais, superar sucessivas crises existenciais ou encontrar um sentido, uma razão para levantar da cama e continuar vivendo superando pressões internas para o tédio existencial.

É fundamental alcançar a imagem que o obceca ou conjunto delas através de alguma forma expressiva visual e assim dar forma às inquietações e retê-las em suportes físicos. Isto alimenta a sua alma e a sacia . A única e primeira testemunha é sempre o próprio artista, ele mesmo. Ele se basta.O ciclo se fecha ali. Não sente a necessidade de mostrar nada para a ninguém.

Isto confirma a idéia da obra de arte como prioritariamente autobiográfica.As imagens surgem sem aviso.Isto pode ocorrer ao iniciar uma obra sem uma motivação, mas apenas pelo desejo compulsivo de se expressar, mais por necessidade vital de soltar a energia acumulada, que muitas vezes incomoda ansiando por manifestação.

Por vezes quando figuras, masculinas ou femininas, seres humanos enfim, surgem em certas obras visionárias, elas não estão em um tempo histórico determinado. São atemporais. Não habitam na cultura. São arquétipos despojados de resíduos culturais, vivem no território do inconsciente coletivo. Aqui se compreende a forte vinculação entre o fazer artístico e o inconsciente coletivo.

O artista acessa, através da experiência visionária, intuitiva e instintiva, movida a turbolências afetivas e emocionais, uma imagem primordial ou os arquétipos. Os arquétipos de anima e animus aí comparecem. Falo em captura, pesca, emersão de imagens ou fragmentos de imagens, que se compõem como mosaico ou vitral, por acreditar que haja uma supra realidade onde a totalidade ou unidade desta realidade não visível pelos procedimentos perceptivos naturais, já está constituída, como potencialidade mas aparenta ser inventada, criada ou descoberta pela primeira vez. A pesca ou captura é uma das formas de acesso às imagens que emergem do inconsciente, durante o processo de criação.

Detalhando, pode acontecer assim: por vezes, incomodado por uma sensação ou sentimento que se torna persistente, pode o artista, o pintor se colocar diante de uma tela à espera de um fragmento de uma possível imagem que constituiria uma unidade final, resultante de vários fragmentos que podem ser pescados um a um em tempos diferentes. Os termos pesca ou captura de fragmentos ou indícios de potencialidades de imagem em verdade se referem a uma aproximação que tem dois sentidos: é o artista quem se aproxima ou é a imagem que vai até ele e irrompe na consciência, como uma onda do mar que arrebenta na areia da praia?

Suponho que estes casais que aparecem em várias obras visionárias, revelam a necessidade de equilibrar a dimensão afetiva com a mulher arquetípica ou o homem arquetípico e consequentemente solidificar a estrutura psíquica, desde a passagem da adolescência para a maturidade da vida adulta.

A explosão criativa, por vezes, arremessa o artista para violentas crises existenciais. A perda do apetite, a anemia, a depressão e a profunda solidão. É como um navio afundando em que a tripulação joga tudo que pode ao mar para retardar o inevitável mergulho final:a descida ao fundo. E mergulha tão profundamente na natureza humana a partir de sua tragédia pessoal e de sua condição social. Começa com um mergulho profundo no subsolo obscuro sem solidez, apenas um movimento para dentro e mais para dentro, cedendo ao impulso de se apoiar de ter uma base.Um desejo que não se realiza nunca, apenas a continuação de um movimento perpétuo. Um universo então surge, desprovido de sentido, inteiramente indiferente ao ser humano.A face sombria e tenebrosa do nada.Apenas um silêncio eterno em um espaço infinito de efeito aniquilador.Aqui o ego consciente solitário e mortal, pode ser estimulado e ao mesmo tempo esmagado.Um mundo para a ser moldado de maneira a coincidir precisamente com a visão imaginada.Dificilmente cognoscível pela razão.A senha para entrar é a paixão.De lá emergem os fenômenos do inconsciente.É pano de fundo obscuro.Camadas obscuras sobrepostas até formarem um tecido viscoso. É um lugar que não obedece à nossa vontade, é autônomo de caráter frio .Mas aberto ao diálogo silencioso das almas desesperadas.É como uma fera adormecida mas de sono leve, tem a beleza do selvagem,do primordial mas pode revelar subitamente um instinto de sobrevivência e auto perpetuação e atacar ferozmente.

Potencializa aventuras perigosas.Como as que encontramos nas iniciações.Há dragões, animais benfazejos e demônios, encontramos o velho sábio, o homem animal, o homem planta, tesouro oculto a árvore mágica, a fonte,a caverna, o jardim protegido por alta muralha, o pântano de areias movediças, o lago misterioso, o farol solitário iluminando o mar escuro e revolto da noite, as escadarias, os portais, os abismos e seus precipícios, câmaras secretas e labirintos, o cume de altíssimas montanhas, as florestas enevoadas de brumas, o céu escuro com nuvens densas,rajadas de ventos muito fortes e gélidos.No entanto são apenas cenários(setting), nada há por trás de consistente.A força da gravidade é intensa e é difícil se mover e se manter ereto em alguns momentos só se pode rastejar reptìlicamente. Não há possibilidade de controle sobre o que acontece.

Tudo tem alma aqui, inclusive os minerais, plantas, lagos, montanhas, rochas, tudo,é sensciente mesmo no mais baixo estágio da consciência.O reinado é do útero, ainda oculto nas trompas de falópio...uma regressão ao estado pré-fetal. O sentimento motivador, que se segue e se torna memória, é a entrada arrebatadora e irreversível do ser humano no mundo. Arrancado de sua simbiose harmoniosa com sua matriz de origem e o começo de uma solidão implacável, com a definição do contorno físico diferenciado que se destaca do corpo materno: a encarnação incorporada da dualidade do dentro e do fora, do eu e os outros que não sou eu.É o vislumbre de um luminoso e numinoso universo de cores brilhantes e iridiscentes que modificam completamente o estado de percepção e consciência do estado de vigília.

Trata-se do encontro da passagem secreta que conduz ao contato íntimo com o inconsciente individual. Um universo de imagens em que se desconhece sua lógica interna, sob o ponto de vista da razão prática, porém se sente familiaridade no plano emocional, sensitivo e instintivo. Na sua essência elas são o indício de fatos psíquicos que se manifestam aos sentidos após um longo trajeto, desde regiões profundamente situadas nas camadas ou sub-estratos de um território extenso e infinito, tanto quanto o próprio universo físico :o inconsciente coletivo.

Um mundo eternamente verdadeiro, que muda de momento a momento.É produto de um ritmo vital ...mas também de um ritmo mortal.A estreita ponte entre a natureza e o espírito.Há uma corrente estelar, pulverizada até uma negra extensão na orla mais distante do universo. Esta se amplifica para uma supra realidade extremamente luminosa e mágica. É como se uma abertura dos céus ocoresse, suas cortinas se abrem e um jardim real com a corte, compartilhada com os Reis, Sacerdotes e guerreiros de civilizações ancestrais se tornam tão próximos que se pode tocá-los. Intuitivamente enquanto insights se percebe que existem vários planos de existência e manifestações da vida que não percebemos no chamado estado de vigília ou de consciência. Em verdade vivemos mergulhados perceptivamente em sucessivos estados de aparência :os véus de maya.

A Arte é um estado alterado de consciência e percepção, um dedo apontado para o céu da Alma Universal: ANIMA MUNDI. A experiência visionária do artista revela a estrutura oculta que sustenta o movimento ascencional do Espírito Humano: A Mandala com seu dois polos: A Anima e O Animus, com a força e a pulsação energética e motora do movimento :O SELF. A Arte é como sonhar, mas acordados.


Bibliografia

JUNG, Carl Gustav. O espírito na arte e na ciência. Petrópolis, Editora Vozes,1991.

________________ O eu e o inconsciente. Petrópolis, Editora Vozes,1982.

________________ A dinâmica do Inconsciente .Petrópolis, Editora Vozes, 1984

________________O homem e seus símbolos.Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira,1975.

________________ Psicologia e Alquimia.Petrópolis, Editora Vozes, 1994.

________________ A natureza da Psique . Petrópolis, Editora Vozes, 2000.

MILLER, Henry. Trópico de Câncer. São Paulo, Ibrasa,1974.

GAILLARD, Christian . Jung e a vida simbólica. São Paulo, Edições Loyola,2003.




O que é Documentário?
Fernão Pessoa Ramos


A questão com a qual iniciamos, de modo um pouco provocativo, nosso artigo, constitui-se da seguinte forma: existe a especificidade do campo não-ficcional, seja na tradição documentária que remonta aos anos 30, seja no contato da imagem não ficcional com o cinema de vanguarda construtivista, seja nas inovações formais trazidas pelo cinema direto/verdade, seja, ainda, nas experiências de narrativa em primeira pessoa do final do século XX? Existe algo estruturalmente comum ao campo não-ficcional, abrangendo também o espaço que hoje cobre as novas mídias e suportes digitais? A questão está em se podemos afirmar a existência de um campo heterogêneo, trabalhado em sua substância imagético-sonora comum, dentro de um leque amplo que vai das experiências com "web câmeras" em sites da Internet, passa por narrativas seriais do tipo "Reality TV" ("No Limite", "Survivors", "Big Brother"), servindo também para as diversas composições de estilo documentário mais clássico, veiculadas por tvs a cabo, alternando formas como depoimentos/entrevistas e voz 'over' explicativa. Um mesmo campo que também teria, em suas fronteiras, propostas no estilo "docudrama", dramatizando/reconstituindo eventos extraordinários (crimes, acidentes, etc) ou fatos históricos realmente ocorrridos, no eixo de programas do tipo "Linha Direta" (que traz o documentário "The Thin Blue Line", de Errol Morris, como sua principal fonte inspiradora). Será que podemos caracterizar o documentário, dentro de uma equivalência enquanto gênero, a partir de outras tradições narrativas do cinema, como o western, o musical, o filme noir? Seria o documentário um gênero como outros, ou teria o documentário características imagéticas (e sonoras) estruturais que o singularizariam deste outro vasto continente da representação com imagens-câmera que é a ficção narrativa (em seus formatos diversos de 'filme' -longa ou curta-, 'mini-série', 'novela')?

Nestes últimos anos, o campo bibliográfico sobre cinema não ficcional tem sido percorrido por alguns títulos2 , que buscam definir parâmetros para se pensar esta produção. São textos que inserem-se em um recorte que chamamos de "cognitivista-analítico". É nítido em sua formulações uma postura de contra-reação. Seu objeto é a ideologia, ainda dominante em nossa época, que tem um certo orgulho em mostrar fronteiras tênues entre os campos da ficção e da não-ficção, embaralhando definições. O embate, por assim dizer, que traz a marca de discussões conceituais mais amplas, envolve distintas concepções da narrativa com imagens em movimento. Esta contraposição entre diferentes abordagens, às vezes fornece a impressão de um diálogo de surdos. Ambas estão corretas dentro dos pressupostos nos quais definem o campo da argumentação, mas são pouco convicentes ao olharem a seara alheia, a partir do próprio entorno conceitual.

No Brasil, reina de um modo difuso, mas uniforme, o discurso que reivindica a não especificidade do campo não ficcional. Nele podemos encontrar embutidos alguns pilares do pensamento contemporâneo de origem pós-estruralista. A linha mais corriqueira deste raciocínio, desenvolve-se dentro de uma postura que valoriza o desafio a normas estabelecidas. Negar o campo documentário, equivale aqui a estabeler uma ruptura. O documentário é visto como um campo tradicional, com regras a serem seguidas. Extrapolar estas fronteiras é um atestado de inventividade e criatividade. O logro que uma narrativa ambígua, eventualmente, pode pregar no espectador, serve como modelo. É interessante notar como este tipo de narrativa encontra-se no âmago da sensibilidade estética de nossa época, provocando uma espécie de atração irrefreável sobre o movimento de análise. Uma narrativa aparentemente documentária, que termina como ficção, seria a prova da impossibilidade de uma distinção analítica clara3. Discutir fronteiras e definições surge como algo ultrapassado, pois reafirma a possibilidade de um saber que desloca, do centro da arena, o recorte analítico que gira em torno de variações sobre a fragmentação subjetiva (seja na análise, seja no discurso fílmico propriamente). Uma pesquisa mais detalhada neste setor, deve contrapor a definição do campo documentário dentro do recorte analítico-cognitivista (Carroll, Plantinga, Ponech) com a bibliografia que trabalha a não ficção dentro do horizonte pós-estrutural (Renov, Nichols, Odin).

O ponto de vista contrário à possibilidade de definição do campo documentário, costuma trazer em seu âmago um outro argumento caro ao pensamento contemporâneo: a questão da reflexividade do discurso cinematográfico. Em geral, o discurso que tem na reflexividade seu ponto de fuga ético, é sustentado pela negação da possibilidade de uma representação objetiva do real. Encontramos, no horizonte, novamente a preocupação do pensamento contemporâneo em frisar a fragmentação da subjetividade que sustenta a representação. A reflexividade, na realidade, é a saída, no vetor ético, do discurso que gira em volta do posicionamento subjetivo estilhaçado. Podemos detalhar esta idéia.

Existe uma confluência entre esta visão de uma necessária opacidade no movimento da representação e o eixo ético através do qual o documentário consegue ser pensado hoje. Assumir um campo específico ao documentário, seria assumir a possibilidade de uma representação objetiva, transparente. O raciocínio desenvolve-se, mais ou menos, na seguinte linha:
1. parte-se do postulado de que, para alguns, o documentário busca, ou tem como objetivo, estabelecer uma representação do mundo;
2. na medida em que o postulado está estabelecido ("eu posso representar o mundo", diria necessariamente o documentarista), a ideologia dominante, hoje, sobrepõe facilmente a esta possibilidade o seu caráter especular e falsamente totalizante;
3. a isto segue-se o discurso sobre a necessária fragmentação do saber e da subjetividade que sustenta a representação;
4. e, necessariamente atrelado, surge a saída ética dominante da ideologia contemporânea: a reflexividade como postura correlata ao indispensável recuo do sujeito (pois necessariamente fragmentado, senão imediatamente ideológico) na articulação da representação. Poderíamos dizer: o recuo reflexivo é o ponto cego ideológico da ideologia contemporânea. É o ponto cego onde a ideologia da ética contemporânea não consegue ver-se enquanto tal. Em outras palavras: é ético mostrar o processo de representação; não é ético construir a representação para sustentar a opinião correta (como defendiam Grierson, ou Eisenstein, em um outro parâmetro).
Podemos perceber que, neste discurso, surgem embaralhados dois campos: o da impossibilidade de afixarmos um saber, ou uma representação; e a pré-concepção de que o documentário, necessariamente, traz a presuposição de uma representação totalizante que afixe este saber. Ao apontarmos para o caráter ideológico (para seu caráter de discurso, de representação) das formulações em torno da fragmentação do sujeito que sustenta a representação (geralmente acompanhadas da ética da reflexividade), também afirmamos que o questionamento dominante hoje do campo documentário, constitui-se a partir de uma visão de mundo que não traz em si, automaticamente, a universalidade de seus pressupostos. Ou seja, existe uma pobreza analítica em ter-se este eixo, repetidamente, como eixo universal para análise. Debita-se ao documentário uma certa inocência epistemológica, cometendo-se um duplo erro: 1) analisar o documentário a partir de um discurso inocentemente totalizador e transparente (o que não corresponde à realidade, em função da diversidade estilística que vimos tentando afirmar para o campo); 2) e, mesmo se assim o fosse, ter um parâmetro relativamente pobre para julgá-lo: o parâmetro que gira exclusivamente em torno da ênfase na fragmentação subjetiva como saída ética. O discurso contemporâneo sobre a sobreposição do campo ficcional e do campo documental, na realidade, responde a demandas posicionadas a partir deste "duplo errro".

Como oposição à representação totalizante e necessariamente transparente que o conceito de documentário implicaria, retira-se uma evidência, atestando a presença da dimensão discursiva. A partir desta constatação, transfere-se para a presença da dimensão discursiva, a evidência da dimensão ficcional do documentário. Como se espessura de procedimentos discursivos e ficção fossem sinônimos, ou ainda, como se o único dispositivo discursivo válido para o documentário fosse apontar em direção às suas próprias condições de enunciação. Em desenvolvimentos mais elaborados, é afirmado que todas narrativas com imagens possuem estatuto enunciativo, o que as tornaria similar, sejam ou não ficcionais. A constatação da espessura da enunciação leva, neste caso, à negação do documentário como especificidade, pois, ao afirmar a especificidade, teríamos que sustentar a existência de uma representação transparente. O círculo então fecha-se, o que é feito às custas de um frágil raciocínio de partida.

Ao localizar o documentário no eixo de uma visão inocente da representação da realidade, carregada com o viés especular, transfere-se para fora deste campo, o universo da representação, que traz em si um posicionamento moderno, contemporâneo, do sujeito em interação com o mundo que lhe é exterior, constituindo e dando ensejo à atividade de representação. Enquanto o documentário é identificado com uma posição inocente, que traz em si a representação especular do real, toda espessura da representação é depositada no lado da ficção. Campos são diluídos de qualquer especificidade e o grande sol da enunciação, das estruturas de linguagem envolvidas no movimento da representação, ocupa o horizonte indistinto da ficção e da não ficção.

Vejamos agora de que modo se configura, com relação a esta questão, o outro recorte analítico do campo documentário, mencionado no início deste artigo como 'cognitivista-analítico'. Neste horizonte é defendido de modo claro a possibilidade de uma definição bem mais rígida do documentário e de suas fronteiras com a ficção. Sintomático desta posição são os artigos, já citados em nota, que surgem, na segunda metade da década de 90, com títulos propondo definições rígidas. Alguns ironicamente, outros mais a sério, buscam levar a empreitada adiante, dedicando-se à missão de definir um campo fechado para a narrativa não-ficcional, a partir de onde ficariam nítidos os recortes. É clara a intenção polêmica destes textos, na própria propositura de um campo especificamente definido como não sendo ficcional. Conforme já mencionamos, uma das posturas mais fortes na ideologia dominante contemporânea é, exatamente, a ênfase na sobreposição de fronteiras e a ênfase na impossibilidade de estabelecer-se campos, conceitos e categorias definidas.

A definição de alguns lugares comuns da ideologia dominante contemporânea, como pertencendo a um campo comum, denominado de pós-estruturalista, já é, em si, motivo para polêmica. A abordagem do eixo analítico-cognitivista desloca-se da preocupação (central para o pós-estruturalismo) com o posicionamento subjetivo, em direção à uma análise da enunciação documentária dentro de parâmetros conceituais próximos da lógica formal. Noël Carrol, em "Fiction, Non Fiction, and the Film of Presumptive Assertion: a conceptual analysis"4, dedica-se a recuperar o conceito de "verdade" na representação documentária, a partir de um trabalho da enunciação documentária pensada enquanto proposições lógicas. Evidentemente, recuperar a idéia de que uma representação documentária possa ser "verdadeira" ou "falsa", deslocando o eixo ético centrado na reflexividade, é um desenvolvimento bastante polêmico.

Para a reflexão lógico-analítica, dizer que o documentário existe e pode ser localizado, significa, portanto, retirar o eixo da análise da questão do posicionamento subjetivo, como horizonte exclusivo para se trabalhar a representação. Ou melhor, significa dizer que a representação é possível, sem que a necessária modéstia do sujeito que a propõe, deva ser o núcleo de sua tematização. Por necessária modéstia, entendemos o campo da reflexividade do discurso e as tematizações em torno da interferência subjetiva na representação (e seu necessário recuo) que ocupam o pensamento contemporâneo. Deslocando-se o horizonte ético da modéstia do sujeito face à representação, abre-se o campo para uma carga analítica sistemática mais desenvolta. Em outras palavras, poderemos tematizar aqui o significado de uma posição analítica que não mais se centrará exclusivamente em uma posição ética, que gira em torno da constante retenção das ambições epistemológicas do sujeito que sustenta a representação.

Na realidade, a abordagem análitica situa-se em um outro universo ideológico, onde a preocupação maior está localizada no estabelecimento de um mapeamento lógico-cognitivo do campo do discurso documentário. Na própria medida em que este mapeamento é creditado como possível, implicando necessariamente na afirmação de um saber, está condenada a posição desconfiada com as ambições subjetivas. O mapeamento lógico implica um saber, e este saber irá ser novamente afirmado na definição do campo documentário. Definir o que é documentário, na realidade, faz parte de uma estratégia provocativa, de conquistar espaço mexendo os cotovelos.

O pensamento analítico que assume a possibilidade de uma definição do campo documentário, trabalha basicamente como dois conceitos centrais: o de "proposição assertiva" e o de "indexação". O primeiro designa o campo documentário como aquele onde discurso fílmico é carregado de enunciados que possuem a característica de serem asserções, ou afirmações, sobre a realidade. No documentário realizaríamos asserções sobre aspectos diversos do mundo que nos cerca. Uma asserção é um enunciado que traz um saber, na forma de uma afirmação, sobre o universo que designa. "Cabra Marcado Para Morrer", por exemplo, contém asserções, proposições na forma da afirmações, (seja como entrevista/depoimento ou em voz over), sobre a vida de uma família que teve seu destino desviado pela instauração do regime militar no Brasil. "Conterrâneos Velhos de Guerra" contém asserções sobre a construção de Brasília e a vida dos operários envolvidos nesta ação. "Drifters", de John Grierson, caracterizaria-se por constituir-se em discurso composto por enunciados assertivos sobre a pesca industrial na Inglaterra dos anos 30.

O documentário tomaria, então, sua singularidade da ficção, ao possuir uma forma específica de representação, composta por enunciados sobre o mundo, caracterizados como asserções. Estas asserções, por sua vez, podem ser analisadas como proposições, a partir de procedimentos que possuem a estrutura da lógica formal, no horizonte. O estatuto discursivo do documentário seria o mesmo, por exemplo, daquele que está contido na afirmação "o professor Pedro dá aulas na Universidade Estadual de Campinas às quinta-feiras de manhã". Este enunciado contém uma asserção sobre o mundo a que pertence o professor Pedro e traz em si uma afirmação que possui, em um grau razoável de previsibilidade, uma asserção que poderá ser confirmada semanalmente. Não está no horizonte desta asserção o logro do destinatário. O fato de o professor Pedro deixar de comparecer à universidade em uma determinada quinta-feira, igualmente não a invalida. Ou seja, ao designar a realidade de que este professor comparece à universidade às quintas, não está no horizonte do razoável supor que ele estará lá sistematicamente aos domingos. O discurso documentário seria uma narrativa com imagens, composta por asserções que mantêm uma relação, similar a esta, com a realidade que designam. E é neste sentido, que deve ser analisado em sua relação com o real que designa. O pensamento pós-estruturalista ao minar repetidamente a posição do sujeito enquanto sustentáculo da representação tem, como defeito, para o recorte analítico, a fatalidade de trabalhar com exceções. Evidentemente o logro é possível, mas concentrar-se, de modo desproporcional, em narrativas que demonstrem a necessária fragilidade da intenção do saber, levaria a análise a enunciados falaciosos. A asserção documentária deve, para a abordagem analítica, ser definida e trabalhada a partir de proposições lógicas, que fecham o campo para a definição de seu conteúdo de verdade.

O segundo conceito que mencionamos como fazendo parte da visão logico-analítica do documentário pode ser definido como "indexação". É importante não confundi-lo com "indicialidade", que designa uma potencialidade da imagem bastante distinta. Por indexação, entenda-se um conceito que aponta para a dimensão pragmática, receptiva, do documentário. A idéia é que, ao vermos um documentário, em geral temos um saber social prévio, sobre se estamos expostos a uma narrativa documental ou ficcional. Como espectadores, fruimos a narrativa em função deste saber prévio. Novamento aqui, o logro do espectador é possível, mas está longe de se constituir regra. O fato da ambigüidade do estatuto de uma narrativa cinematográfica poder facilmente ser construída (o último grande exemplo, neste campo, talvez seja "A Bruxa de Blair"), não parece ser metodologicamente significativo para esta abordagem. Na ampla maioria dos casos, efetivamente, sabemos o que significa uma narrativa documental, que tipo de imagens contém, e reagimos, enquanto espectadores, a este saber. Socialmente, uma série de procedimentos nos informam o tipo de narrativa a que estamos tendo acesso. Também aqui, é razoável afirmar que o estatuto de documentário ou ficção, que a narrativa adquire socialmente, em geral coincide com os objetivos dos realizadores do filme. Embora exista toda uma reflexão que debruça-se sobre as exceções à regra, nada impede que um pensamento sobre a regra propriamente (ou seja a coincidência entre a indexação, os objetivos dos realizadores e a postura espectatorial) também seja considerada relevante. O importante é destacar que, para além de sua acoplagem ao conceito de proposição assertiva (de onde podemos distinguir sua concepção originária), a evidência da indexação introduz uma dimensão propriamente pragmática, que designa uma relação de duas vias com o destinatário do discurso, dentro do contexto social no qual a narrativa concretamente se insere.

Para tematizarmos do lado de fora as propostas da abordagem cognitivista-analítica, tentaremos desenvolver uma abordagem que trabalhe com a especificidade da imagem documentária, mas situando-a em um campo não estritamente lógico-formal. Ou seja, nos interessa da crítica analítico-formal a abordagem que desloca a fragmentação subjetiva do centro da análise, mas sentimos os limites das discussões que reduzem o campo documentário a enunciados lógicos. Entre uma proposição e uma imagem vai uma diferença grande, mesmo se, metodologicamente, procedimentos advindos da filosofia da linguagem possam ser úteis para ampliar o campo temático em torno do qual giram as análises do documentário. Neste sentido, sentimos dificuldades em acompanhar Carroll5 em sua negação da singularidade epistemológica da imagem câmera, ou, em seus termos, da "mídia" envolvida na tomada e exibição desta imagem (o que critica como "medium-essentialism"). A imagem documentária pode ser pensada a partir de estruturas recorrentes da composição imagética, em niveis distintos envolvendo:

a) a produção desta imagem através do que chamamos "tomada", constituída a partir da presença de um "sujeito" no mundo sustentando a câmera (o sujeito da câmera);

b) a composição desta imagem como imagem maquínica, mediada pela máquina câmera, implicando na dimensão indicial desta imagem a partir do traço do transcorrer do mundo no suporte (seja este suporte digital, videográfico ou película);

c) a dimensão pragmática desta imagem, ao fundar a relação espectadorial, no modo que tem o espectador de poder "lançar-se" à circunstância da "tomada" fundada pelo sujeito da câmera.

Pensemos em um caso extremo, para melhor mapear a especificidade do campo da imagem documentária, conforme a entendemos: a imagem da morte. A imagem-câmera da morte real possui uma forte intensidade que nos absorve por completo e nos coloca em posição desconfortável com relação ao que está sendo exibido. Uma imagem de morte real constitui-se em uma espécie de fronteira, onde a posição espectadorial é possível. Uma fronteira ética, inclusive, onde a fruição do horror traz em si uma porção inevitável de má-consciência pelo desbalanço entre a desgraça representada e o prazer obtido com a representação. A este desnível chamamos sadismo, e sua fruição traz uma postura que não é aceita socialmente em nossa sociedade. Os romanos tiravam prazer em ver seres humanos devorados ou mortos na arena. Na sociedade contemporânea ocidental, este prazer é condenado. No entanto, ainda podemos ter uma parcela deste prazer da arena com uma imagem de morte real, se tal fruição da representação da morte nos atrai. Mas também este posicionamento é suscetível de crítica. Uma imagem-câmera de morte real não é algo para o qual olhamos de modo indiferente.

A posição espectadorial que acabo de delinear acima refere-se, evidentemente, à uma imagem de morte que seja indexada como não ficcional, uma imagem de morte real. Que reação provocaria no mesmo espectador uma imagem de morte da qual fosse informado tratar-se de encenação e que correspondesse, dentro do horizonte de indexação no qual nos locomovemos, à uma imagem ficcional, encenada de acordo com os procedimentos corriqueiros que cercam nossa noção do que é ficção? Aparentemente nenhuma das emoções acima descritas acompanharia a fruição de uma morte representada ficcionalmente. Os filmes de ficção estão carregados de imagens de morte que nos provocam um tipo de emoção evidentemente distinta. Morte ou beijo, morte ou despedida, morte ou batida de carro, a emoção no espectador provocada por estes eventos parece poder ser equalizada.

A imagem não ficcional, disposta ou não em narrativa documentária, tem como paradigma esta intensidade própria à imagem da morte, e nisto singulariza-se. A mesma intensidade que apontamos atrás em uma imagem de morte real podemos localizar, em diferente grau, nas tomadas que configuraram, na década passada, momentos paradigmáticos da história do século: o espancamento de Rodley King pela polícia de Los Angeles, o massacre dos sem-terra no Pará, o assassinato cometido pela polícia paulista na Favela Naval. Outras imagens paradigmáticas podem ser citadas nesta mesma linha, buscando exponenciar a questão da intensidade da imagem-câmera: o estudante chinês desafiando uma coluna de tanques na Praça da Paz Celestial; a explosão da nave Discovery; a morte de Airton Senna; o assassinato de John Kennedy; os astronautas americanos dando os primeiros passos na Lua. Exemplos podem ser multiplicados ao infinito. Este tipo de imagem possui um estatuto particular em nossa sociedade. As comoções sociais que sua exibição provoca, são prova da intensidade exponencial que estas imagens possuem. Imagens pictórias ou descrições orais/escritas de testemunhas oculares, a partir dos mesmos fatos, obtêm reações qualitativamente diversas. Em nosso ponto de vista, este tipo de intensidade deve colocar-se no cerne de qualquer trabalho analítico mais amplo que debruce-se sobre as imagens não ficcionais.

De onde advém a surpreendente intensidade que a imagem não ficcional pode adquirir e como podemos definí-la de modo mais preciso? Devemos, para tal, atentar em direção às particularidades de sua conformação, principalmente através de suas características como imagem e som: maquínicos e necessariamente advindos da mediação pela câmera. De modo mais preciso, podemos destacar uma etapa central na constituição desta imagem, mediada pela câmera, que é a tomada propriamente. A circunstância da tomada, para sermos mais específicos, é algo que conforma a imagem-câmera de um modo singular no universo das imagens. Por circunstância da tomada entendemos o conjunto de ações ou situações que cercam e dão forma ao momento que a câmera capta o que lhe é exterior, ou, em outras palavras, que o mundo deixa sua marca, seu índice, no suporte da câmera ajustado para tal.

Podemos pensar em um "estar" fenomenológico do sujeito que sustenta a câmera, como sendo marcado pela dimensão da presença que traz em si este "estar", próprio do ser humano. Dizemos "estar fenomenológico do sujeito" pois a câmera possui esta pontencialidade, acima de todas as outras, de significar uma presença em ausência. De significar uma forma de presença na circunstância da tomada. É para esta dimensão da presença, singular à imagem-câmera, e que não encontramos em um desenho, por exemplo, que volta-se, de modo dominante, a fruição espectadorial da imagem não-ficcional. É esta presença da câmera e do sujeito na tomada, que permite a composição da intensidade das imagens, acima citadas. Digo intensidade, pois a dimensão da presença surge reduplicada, lançada, do momento da constituição da imagem para o momento da fruição desta mesma imagem. Boa parte do pensamento contemporâneo desenvolve-se de modo a realçar as estruturas de enunciação que envolvem o intervalo entre a tomada e a fruição do espectador. Nestas abordagens, a dimensão enunciativa acaba por adquirir uma espessura que aproxima, de modo excessivo, a imagem que tem a mediação maquínica da câmera, do conjunto das outras imagens pictóricas.

Narrativas imagéticas voltadas para explorar a intensidade da presença na circunstância da tomada, não são exclusivas do cinema não-ficcional. Grandes cineastas da narrativa cinematográfica, percebem as pontencialidades da tensão do presente que transcorre como presença na tomada, e articulam sua estilística para exponenciar esta intensidade de modo poético. Diretores como Roberto Rossellini ou Jean Renoir, são artistas que têm na intensidade da presença na tomada, um núcleo articulador na construção de seu estilo. Mas é evidentemente na tradição do cinema não ficcional que a dimensão da presença na tomada adquire um campo aberto para abrir suas asas sobre o espectador. O cinema não ficcional é voltado para o instante da tomada, para o transcorrer da duração na tomada e para maneira própria que este transcorrer tem de se constituir em presente, que se sucede na forma do acontecer. Podemos pensar no contra-argumento de que existem cineastas, dentro da tradição não-ficcional, que trabalham com estilos nos quais esta presença não surge na linha de frente. Novamente insistimos sobre o fato de que a constatação de que é possível extrapolar definições e embaralhar fronteiras, não deve impedir uma reflexão mais acurada sobre as características sistêmicas do conjunto das narrativas que denominamos documentárias, ou, de modo mais amplo, não-ficcionais.

Este dobrar-se da narrativa não-ficcional sobre a tomada da imagem, não deve levar-nos a negar a dimensão enunciativa, de discurso propriamente, desta narrativa. Particularmente, o trabalho que chamamos "montagem", e que é realizado a partir de imagens originalmente constituídas na situação de tomada, deve ser destacado. Um diretor como Frederick Wiseman, costuma filmar 30 horas, ou mais, para montar 3. Suas próprias declarações, inclusive, dão amplo destaque para o trabalho de seleção e montagem que desenvolve com as imagens que coleta. Influenciados pelo discurso dominante hoje com relação ao tipo de trabalho que é valorizado, a maior parte dos cineastas coloca ênfase na articulação enunciativa das imagens. A preocupação, um pouco obsessiva, de nossa época com esta dimensão, pode fazer com que o que salta aos olhos na obra de Wiseman não seja visto. E o que salta aos olhos é sua capacidade de apreender a vida, o mundo, em seu transcorrer, no pingar de seu presente, conforme surge para o sujeito que sustenta a câmera. Este é o âmago de seu estilo, e é aí que está a magia de sua imagem. Do mesmo modo, a força estilística de Flaherty, está na intensidade das tomadas, nas quais vemos Nanouk puxar com dificuldade um leão marinho com seu arpão, ou o pescador de Aran tropeçando aflito nas pedras, fugindo de ondas maiores que parecem lhe ameaçar. Reduzir a obra de Flaherty às manipulações envolvidas por necessidades de encenação etnológicas, enfatizando o trabalho oculto da mediação discursiva, é, no meu ponto de vista, situar-se em um ponto lateral para abordar o todo. A magia de Flaherty está em saber transfigurar a presença em imagem. Flaherty estava lá, Flaherty morou onde a circunstância da tomada transcorre. Flaherty também sabia filmar, sabia esperar o momento de transferir para tela a intensidade da presença, obtida através de longas estadias no local. Flaherty engravida-se longamente de presença, para depois condensá-la em imagem e articulá-la em narrativa, de modo que a intensidade original seja preservada.

Mesmo na recuperação de um diretor como Vertov, podemos sentir esta preocupação excessiva com a dimensão enunciativa, orientando a visão contemporânea dominante de seu legado. Esta recuperação encaminha-se por inteiro para realçar os aspectos construtivistas de seu estilo, principalmente a partir do que o próprio Vertov chama de "metodologia do cine-olho". As propostas contidas no cine-olho vertoviano estão por inteiro voltadas para o explorar dos efeitos da montagem cinematográfica, como forma de construção. Mas há outro conceito esquecido, presente nos escritos do diretor. Trata-se do que Vertov chama de "a vida de improviso", termo que traz uma interessante análise da tomada propriamente, voltada para o acaso e para a indeterminação. É esta visão do documentário como narrativa capaz de captar "a vida de improviso", que irá levar o crítico francês George Sadoul a proclamar, no início dos anos 60, Vertov como pai do Cinema Verdade. O próprio Sadoul, em seguida, faria sua autocrítica em relação a aspectos imprecisos da proximidade que havia levantado entre o "kino-pravda" de Vertov e o Cinema Verdade. O pensamento contemporâneo, no entanto, ao enfatizar a concepção enunciativa contida no método do cine-olho, deixa em completo esquecimento a parte do pensamento vertoviano que valoriza tomadas envolvendo a "vida de improviso". Este lado é indissociável, como a outra face da moeda, da concepção de montagem presente metodologia do cine-olho vertoviano. "Vida de improviso" é a marca das imagens de Vertov, no que estas imagens estão voltadas para a intensidade da tomada. O "cine-olho" não lida com qualquer imagem, ele deve manipular, montar, somente imagens da vida, da vida em seu acontecer imprevisto, não encenado, indeterminado e ambígüo. A noção de imprevisibilidade, própria à circunstância aberta da tomada, irá fornecer o diferencial estilístico ao trabalho de montagem, proposto pelo método do cine-olho.

Se as narrativas voltadas para exponenciar a circunstância da tomada aparecem como centrais em trabalhos próximos da estilística do Cinema Verdade/Direto, há, na história do cinema documentário como um todo, uma espécie de força centrípeta que atrai a imagem e o espectador para a presença do sujeito que sustenta a câmera na tomada. O pensamento dominante que questiona e tematiza o posicionamento subjetivo, tem certa dificuldade em lidar com esta evidência. A densidade da mediação discursiva que acompanha o estilhaçamento da centralidade da posição subjetiva no pensamento contemporâneo, impede uma análise que tematize a presença do sujeito na tomada e o debruçar-se, do espectador, sobre esta presença. A reflexão marcada pela abordagem lógico-analítica dos enunciados da narrativa não-ficcional, também sente dificuldade em tematizar isto que seria a singularidade radical da imagem-câmera e sua narrativa, com relação a outras estruturas enunciativas. O molde lógico-analítico necessita de universalidade, para que sua aplicabilidade seja coerente, independentemente do veículo que serve como mídia.

Dentro de um trabalho que tem o questionamento subjetivo pós-estruturalista no horizonte, Vivian Sobchack realiza em seu livro "The Adress of the Eye"6, uma espécie de fenomenologia da presença do sujeito da câmera na tomada, trazendo para o centro da tematização, a figura do espectador. Trata-se de um pensamento marcado pela fenomenologia de Merleau Ponty que irá trabalhar o ato de ser através dos olhos de outrem, como característica da câmera. No âmago da análise, estão as delicadas mediações estabelecidas pela autora para pensar a presença do sujeito na tomada e o modo pelo qual esta presença se "endereça" ao espectador, em uma via de duas mãos. Ao comentar uma imagem paradigmática da força desta presença, o crítico francês André Bazin dizia, sobre a intensidade de uma imagem borrada e completamente fora de foco, tomada em uma jangada em alto mar, que esta representava não a imagem de um tubarão (que precariamente distinguia-se na tela) mas a imagem do perigo. Figura de linguagem que aponta para uma relação espectadorial não com a imagem propriamente, enquanto representação, mas com a "tomada" em estado puro (por assim dizer) e o traço bruto da circunstância de sua composição. Como se fosse possível, através da imagem-câmera, atingirmos diretamente a circunstância do mundo, extraordinária e intensa, que conformou a imagem. A imagem como marca da presença do sujeito que sustenta a câmera, pode ser tão intensa que a dimensão propriamente figurativa se esvaece. A intensidade da imagem borrada e fora de foco, que mal podemos distinguir, permanece como paradigma da potencialidade singular da imagem-câmera na articulação da fruição espectadorial, lançando-se para a tomada. E é esta potencialidade singular que pode nos situar em uma perspectiva instigante para pensarmos a tradição da narrativa documentária em particular, e as imagens não-ficcionais de um modo geral.


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1
in Ramos, Fernão Pessoa e Catani, Afrânio (orgs.), Estudos de Cinema SOCINE 2000, Porto Alegre, Editora Sulina, 2001, pp. 192/207
2
- Ponech, Trevor. "What Is Non-Fiction Cinema?". Westview Press, 1999.

- Plantinga, Carl. "What is a Nonfiction Film", primeiro capítulo de "Rethoric and Representation in Nonfiction Film", Cambridge University Press; 1997.

- Carroll, Noël. "From Real to Reel: Entangled in Nonfiction Film" in "Theorizing the Moving Image". Cambridge University Press, 1996.
3
O Sanduíche (2000) curta (14 min.) de Jorge Furtado, revela bem a atração que exerce sobre a sensibilidade contemporânea as narrativas em abismo, nas quais os campos ficcionais e documentário sobrepõe-se sem definição clara. Também em debates e palestras, documentaristas contemporâneos (Furtado, Salles, Coutinho, entre outros) revelam nitidamente a valoração positiva implícita na indefinição de fronteiras.
4
in Allen, Richard e Smith, Murray. "Film Theory and Philosophy". Oxford University Press, 1997.
5
Particularmente em From Real to Reel: Entangled in Nonfiction Film e em Defining the Moving Image in Carroll, Noël. Theorizing the Moving Image. Cambridge University Press, 1996.
6
Sobchack, Vivian. The Adress of the Eye. A Phenomenology of Film Experience. Princeton University Press, 1992.